A opinião de Fernando Ribeiro na TSF.
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Para prevenir o politicamente correcto, deixo já a nota de intenções que não moro, nem nunca morei em Almada, nem me pretendo mudar para lá. No entanto, sinto que tenho contexto, contacto e familiaridade suficiente com a cidade para me atrever a escrever algumas palavras legítimas acerca dela.
Lá por estar a olhar para Lisboa, Almada nunca ficou quieta em contemplação. Durante anos evoluiu tremendamente, fixando lá muitos jovens e atraindo outros tantos para viver lá, apesar da chatice da ponte e de todas as dificuldades diárias, concretas e específicas de quem lá escolheu habitar. O meu irmão Ricardo é um desses casos e mudou-se para Almada vai fazer dois anos. Já recuperou uma casa antiga e vai ser pai, fazendo a sua parte como cidadão e munícipe. É sócio do Piedade, vai aos jogos, e apesar de conhecer melhor a história dele, sei que não é caso único nesse abraço a uma comunidade que sempre me exerceu, a mim também, algum fascínio.
Muito desse fascínio provém da música que se fez e continua a fazer em Almada e por toda a Margem Sul. A sua cena musical e artística nunca se deteve perante divisões e foi lá, inevitavelmente, que vi muitos dos concertos que me viriam a moldar enquanto jovem músico. Havia uma "inveja boa" de Almada porque se respirava avant-gardismo e liberdade. Em Lisboa muita gente se sentia rejeitada e ao passar a ponte ou na viagem de cacilheiro, era sempre com alívio que deixávamos a capital atrás, vista agora só ao de longe.
Muitos desses concertos tiveram lugar no Ponto de Encontro que era isso mesmo, um Pólo frequentado por criadores, todos eles com alguma extravagância e pose, à mistura com malta mais punk e roqueira. Nas caves geminavam plantas raras como os Capela das Almas, a banda que me ensinou e mostrou a cartilha gótica e que me iluminou tanta da treva teimosa que me tolhia o metaleiro pensamento. Vi-os ao vivo lá, como em sua casa, sem prescindirem das velas, das tochas, do reverb profundo na voz do Paulo Gordo, a bateria sempre extravagante do Osga, a guitarra (midi) do Rato e o baixo do Popas. Mandaram a casa abaixo e quase a queimaram com as teias de aranha artificial mas eram momentos assim que nos punham em contacto com um mundo não só diferente, mas, a todos os títulos, especial. Também por lá, na Feira do Metal, se faziam não só trocas e baldrocas, mas contactos que durariam uma vida inteira, garantido novos negócios e empresas, novos contribuintes.
Desejei ardentemente tocar lá com os Moonspell, mas nunca aconteceu apesar de ser ter falado nisso. Não me envergonha dizer que talvez ainda não estivéssemos ao nível do que por lá se apresentava, nomeadamente muitas bandas locais e é na qualidade de mero visitante que vos escrevo a atestar da tamanha importância deste pequeno mas valente (e porque não histórico?) sítio em Almada.
Há quatro anos atrás quando a Inês Medeiros, arrebatou a Câmara por apenas 400 e tal votos, arrepiaram-se-me todos os pelos da nuca. Quando agora sei, por público entreposto, que o Ponto de Encontro foi retirado aos Almadenses que o fizeram e dado a explorar a uma instituição de fora do concelho, tenho a certeza que o "voto de protesto" há quatro anos não terá sido assim tão boa ideia, pois não?
Circula uma petição online que faço questão de vos convidar, civicamente, a consultar e assinar, não interessa se são ou não de Almada, porque isto acontece todos os dias: o roubo da identidade de um sítio para dar lugar a uma estrutura envidraçada e asséptica, que vai afastando as pessoas até que finalmente o interesse imobiliário vença e se faça ali, à boa maneira PS, mais um edifício de apartamentos para a classe média alta vir dormir com vista para o Tejo. Se tiverem dúvidas sobre a importância de Almada na música nacional visitem a exposição Na Margem, uma história do rock, organizada por uma Câmara que de todo não entende o que está a expor.
Eu sou da Brandoa. Trabalho no mundo e vivo em Alcobaça. E, apesar disso, acho que se Almada se deixar comer assim desta maneira, todo o país perderá uma referência de liberdade, criatividade e de verdadeira independência.