Somos cada vez mais digitais e globais, mas continuamos a pagar impostos, a descontar para a segurança social e a precisar de um passaporte tal como em tempos ancestrais.
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Como provar que eu sou eu? São ilimitados os elementos que diferenciam os seres humanos entre si. Mas nunca a ciência foi tão capaz como agora de capturar todas as características físicas e genéticas que nos imputam uma dimensão singular. Também nunca a coleta e administração de dados pessoais e coletivos foi tão sofisticada. O "eu" nunca foi tão "eu". Mas a forma como provamos a nossa identidade continua a ser a mesma desde o século XV: através de cartões de identidade e passaportes.
São estes documentos feitos de papel ou plástico, passíveis de roubo, sujeitos à contrafação e dispostos ao extravio que certificam a nossa identidade. E são estes mesmos papéis que, num mundo de hiperconexões e de permanente imediatismo, possibilitam que nos movimentemos entre fronteiras.
A forma como nos identificamos, como são tributados os nossos rendimentos e como descontamos para a segurança social está desajustada perante o modo globalizado como vivemos. São como as ruas estreitas dos centros medievais de algumas cidades, construídas sem prever a circulação de carros. Ou como os dispensáveis dentes do siso, que ainda refletem os tempos ancestrais quando tínhamos mandíbulas maiores.
O Estado Moderno assenta as suas pilastras em conceitos que acabaram por se modernizar, sem que a administração pública acompanhasse a evolução das espécies. Foi a sociedade que encabeçou a reforma dos conceitos de fronteira, de distância, de independência nacional e de soberania. Sentimos o incêndio da Notre-Dame de Paris como se fosse à frente de casa e acompanhamos a política brasileira com mais apego do que D. João VI. Globalizamos as nossas práticas e a nossa identidade.
Ainda assim, tributamos rendimentos praticamente da mesma forma desde 1641, quando foi criado um tributo individual que tinha como objetivo cobrir as despesas da Guerra da Restauração.
O sistema de tributação pressupõe que nós trabalhemos sempre no local onde vivemos. O princípio é o da limitada mobilidade individual. Se eu trabalho numa fábrica no Cacém, não posso voltar para a minha casa na Rússia no final do dia. Mas muitos empregos não exigem presença física, podendo ser executados remotamente. Eu posso ser um português que vive em Moscovo, sendo proprietário de uma empresa alemã que presta serviços para um cliente britânico. Também posso ser um português com dupla nacionalidade, adicionando mais uma variável a um algoritmo já complexo.
Ainda que seja difícil de explicar a um funcionário das Finanças, a internet permite que eu trabalhe de pijama. E em qualquer ponto do mundo.
Apesar dos avanços na adoção de acordos para evitar a dupla tributação e do trabalho de cooperação internacional liderado principalmente pela OCDE (por intermédio do Global Forum on Transparency and Exchange of Information for Tax Purposes, por exemplo), ainda escasseiam os consensos sobre como adaptar um instrumento essencial do Estado - o pagamento de impostos - às novas realidades digitais e desterritorializadas.
Com isso nasce todo o tipo de amarras. Uma das razões pela qual muitos cidadãos americanos resistem a viver no estrangeiro é porque o país é um dos poucos no mundo que tributa rendimentos em casa a cidadãos que vivam no exterior, forçando-os a pagar impostos duas vezes. É uma lei criada durante a Guerra Civil americana para inibir a emigração e engordar os recursos humanos para a campanha militar.
O mesmo acontece com a segurança social. A minha geração de portugueses emigrou aos solavancos. Foi indo e vindo de país em país de acordo com as oportunidades apresentadas, pulverizando as suas contribuições sociais por várias geografias. A União Europeia mantem, há várias décadas, um sistema mínimo de colaboração entre estados membros sobre este tema. Mas também este sistema precisa de reforma e a proposta de revisão submetida pela Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho continua em banho-de-maria desde 2016.
São poucos os países com administrações públicas e vontades políticas com plasticidade suficiente para se afinarem com os tempos vigentes. A modernização da máquina do estado portuguesa da última década continua cheia de lacunas. Aceleram-se os movimentos entre as diversas fases da cadeia de produção da burocracia, mas não se eliminaram etapas nem se estudou, de forma disruptiva, como atingir objetivos semelhantes através de caminhos ainda por cartografar.
Existem exceções. A Austrália introduziu, em 2015, o conceito de passaporte virtual para viagens à Nova Zelândia. Os passageiros são autenticados pelos seus dados biométricos e por reconhecimento facial, sendo os dados armazenados na nuvem.
Os cidadãos dos Emirados Árabes que voem a partir do terminal 3 do aeroporto do Dubai podem usar a UAE Wallet, uma aplicação de smart phone que substitui o cartão de cidadão, o passaporte e o cartão de embarque.
É da Ásia que têm chegado corajosas iniciativas de reforma administrativa. Se em meados do século XIX foi em Paris que Mouzinho da Silveira se refugiou e inspirou para lançar as bases da moderna fiscalidade portuguesa, hoje os nossos fiscalistas precisam de projetar os seus olhares para mais longe.
* Rodrigo Tavares é fundador e presidente do Granito Group. A sua trajetória académica inclui as universidades de Harvard, Columbia, Gotemburgo e California-Berkeley. Foi nomeado Young Global Leader pelo Fórum Económico Mundial