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A cimeira informal, no Porto, dos Chefes de Governo da União Europeia refletiu bem os problemas atuais da União. Tradicionalmente a União Europeia conquistou a confiança dos cidadãos europeus através dos ganhos concretos que lhes foi oferecendo. Durante décadas, o processo de integração europeia foi sinónimo de paz, crescimento económico, maior coesão social e consolidação democrática. Devido à sua complexidade, a Europa tem dificuldade em assegurar uma legitimidade democrática tradicional, mas tem compensado isso com uma forte legitimidade pelos resultados: o que oferece aos cidadãos europeus.
Compensa a sua aparente ineficácia atual com promessas de um futuro glorioso.
Infelizmente, a paz e a democracia já não são vistas, em muitos Estados, como uma garantia europeia e a estagnação e crescente divergência económica e social têm colocado em causa essa forma tradicional de legitimação da integração europeia.
Perante a escassez de resultados concretos a União começou uma espécie de fuga em frente. Compensa a sua aparente ineficácia atual com promessas de um futuro glorioso. Mas como estas, frequentemente, não dependem dela isso apenas alimenta mais frustração que a União procura compensar ainda com mais promessas. A Declaração da Cimeira Social é apenas o último exemplo deste ciclo vicioso. Os objetivos são todos meritórios e correspondem a alguns dos principais desafios que a Europa enfrenta hoje: a insegurança económica e a redução da mobilidade social. Qual é então o problema? É que o cumprimento desses objetivos depende mais dos governos nacionais do que da União Europeia. A União está a alimentar expetativas nos cidadãos que não dependem de si satisfazer. A verdade é que há diferentes noções do que é a Europa Social entre os diferentes Estados Europeus e essas divergências impedem a União de adotar iniciativas concretas neste domínio. Para os países mais ricos a Europa Social significa, sobretudo, proteger o seu modelo social da concorrência económica dos outros Estados. Há outros países que gostariam que Europa social fosse uma Europa mais solidária entre Estados, com a criação de novas prestações sociais financiadas com dinheiro europeu, mas isso é o que os Estados mais ricos não querem. Perante este impasse, a União Europeia faz declaração atrás de declaração de direitos e objetivos sociais sem medidas concretas que os garantam. Foi isto que levou Silva Peneda a chamar, ironicamente, a Declaração do Pilar Social de 2017, o poema.
Até agora a União exportou para o resto do mundo quase 50% das vacinas produzidas na Europa, enquanto os americanos reservaram todas as suas para os seus cidadãos. Como é possível, perante isto, que sejam os Estados Unidos a aparecer como os bons da fita?
A insuficiência desta estratégia ficou clara com o facto do tema que realmente dominou, se não ensombrou ou assombrou, a cimeira ter sido a hipótese do levantamento das patentes das vacinas, suscitada pelo Presidente americano Biden. Também aqui a União viu expostas as suas deficiências. Até agora a União exportou para o resto do mundo quase 50% das vacinas produzidas na Europa, enquanto os americanos reservaram todas as suas para os seus cidadãos. Como é possível, perante isto, que sejam os Estados Unidos a aparecer como os bons da fita? A União tem muito mais autoridade moral do que os Estados Unidos neste tema pois tem sido bem mais solidária com o resto do mundo. Mas a ausência de uma liderança clara significa que a mensagem europeia é uma cacofonia. Ninguém percebe qual a posição europeia entre as vozes dos diferentes líderes europeus e nacionais que se apressaram a falar.
Preparam mais um poema, quando o que os cidadãos precisam é de um pouco mais de prosa.
É neste contexto que se iniciou ontem também a Conferência sobre o Futuro da Europa. Infelizmente, também esta parece sofrer dos mesmos equívocos da Europa social. Por um lado, é apresentada como a grande oportunidade de os cidadãos terem diretamente voz no futuro da Europa. Através de assembleias deliberativas vão poder apresentar o que querem e esperam da Europa. Por outro lado, no entanto, os chefes de governo nacional já vieram dizer que nem pensar em qualquer reforma dos tratados. Acontece que é bem provável que muitas das iniciativas dos cidadãos exijam reformas dos tratados, até para a União ter as competências necessárias para as empreender. Mais uma vez, estão-se a criar expetativas nos cidadãos cujo o cumprimento se parece, desde já, querer impedir. Preparam mais um poema, quando o que os cidadãos precisam é de um pouco mais de prosa.
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