Corpo do artigo
O ataque que matou Qassem Suleimani, 62 anos, alto dirigente iraniano, tido no seu país como um misto de James Bond e Lady Gaga, e que tem sido fundamental no papel regional do Irão (ao liderar a força de elite Al-Quds), além de tremendamente popular, acontece depois da investida de milícias pró-iranianas sobre a embaixada americana no Iraque e depois do bombardeamento americano, a 29 de dezembro com aviões F15, de bases do movimento xiita Hezbollah pró-iraniano na Síria e no Iraque. Na noite de sexta-feira mais elementos de milícias pró iranianas foram assassinados com recurso a drones, em território iraquiano.
Mas tudo isto não pode ser dissociado do conflito israelo-iraniano, uma espécie de mini-guerra desde 2012, como lhe chamava Alain Frachon no Le Monde, um conflito de relativamente pouco baixa intensidade, que tem sido marcado ora pelo ataque israelita a alvos do Irão, ora pela colocação e disparo de mísseis iranianos para território israelita a partir de bases do Hezbollah no Líbano.
Estamos perante uma escalada perigosa. Hassan Rohani, Presidente do Irão, prometeu vingança; o líder supremo Ali Khamenei depois de ordenar três dias de luto disse que "a vingança será severa". A mesma expressão foi usada pelo antigo líder da Guarda Revolucionária iraniana: "A vingança contra a América será terrível"; e até o moderado Javad Zarif, MNE, considerou a operação norte-americana um ato de terrorismo internacional e uma "escalada extremamente perigosa" das tensões.
Quando Trump rompeu com o acordo nuclear em 2018, começou esta escalada a que se junta, e não é de somenos, o reforço das sanções sobre a economia iraniana.
Isto prova o quão distante já estamos do ambiente político e diplomático que rodeou o acordo nuclear dos 5 países do conselho de segurança mais a Alemanha, assinado com o Irão em 2015, após um enorme trabalho da então alta representante da UE para a política externa Federica Mogherini, um desanuviamento que levou inclusive a um encontro informal entre Barack Obama e o presidente iraniano Hassan Rohani.
Quando Trump rompeu com o acordo nuclear em 2018, por entender que era mau por não contemplar os mísseis balísticos iranianos e a influência regional do Irão, no que também foi lido como uma espécie de capricho adolescente de quem tudo ia fazendo para dar cabo do que tinha sido conseguido pelo antecessor, começou esta escalada a que se junta, e não é de somenos, o reforço das sanções sobre a economia iraniana, que nesta altura atinge o crucial setor do petróleo. A isso junta-se uma gestão - há muitos anos - pouco eficiente dos recursos do país, excessivamente concentrados nas mãos da poderosa Guarda Revolucionária, com um papel preponderante na economia iraniana, além do dispêndio que o país tem com os seus protegidos na região. Queixa-se sobretudo uma juventude, geralmente bastante qualificada mas sem perspetivas ou horizontes compatíveis com essas qualificações.
Vai ser um ano crucial para o relacionamento entre o Irão e os Estados Unidos, até porque há eleições nos dois países: parlamentares já em fevereiro no Irão com provável vitória da ala mais dura do Parlamento, isto é, da corrente mais ligada ao antigo presidente Mahmoud Ahmafinejad e ao Líder Supremo Ali Khamenei (isto num contexto de crise económica e de repressão de protestos populares em novembro passado com centenas de mortos e milhares de feridos) e, em novembro deste ano que agora começou, há também eleições nos EUA e, para todos os efeitos, também se pode dizer que, apesar da popularidade em baixa, Donald Trump é favorito.
O Irão errou ao voltar a enriquecer urânio a níveis além do permitido.
Conflito para negociar em ano eleitoral
Uns e úteis devem, aliás, jogar com a carta da situação internacional para consumo interno. Trump já disse que Qassem Suleimani não foi morto para começar uma guerra, mas "para evitar" uma guerra, perante a iminência de um alegado ataque contra interesses americanos. O Presidente dos Estados Unidos vai querer pressionar o Irão a negociar. Resta saber se não foi longe demais para o conseguir. Que os mísseis balísticos e o papel regional do Irão venham a fazer parte do caderno de encargos de uma futura mesa negocial, não restam grandes dúvidas. Isto para não falar nas posições de força no Golfo ou no ataque a instalações petrolíferas sauditas (esse reino paladino das liberdades tão do apreço dos EUA e do ocidente, que este ano, apesar da desgraça que provoca no Iémen, até receberá uma cimeira do G20).
O Irão errou ao voltar a enriquecer urânio a níveis além do permitido no acordo supervisionado pela Agência Internacional de Energia Atómica, pois isso dificulta o isolamento a que os EUA se estavam a votar ao romper com o acordo nuclear. Agora, é mais fácil a Trump dizer que o acordo é mau e que, além disso, os iranianos já nem o estão a cumprir.
Em ano eleitoral nos EUA, o Irão quer forçar Trump ao levantamento de sanções. Não é certo que uma nova guerra no Golfo jogue contra as ambições eleitorais de Donald Trump, mas se acontecer - se acontecesse - e Trump sair derrotado a 3 de novembro, terá num novo conflito a justificação para uma derrota que, na verdade, seria o resultado de uma presidência, a vários níveis, pouco menos que desastrosa.
Dizem os especialistas que nem os EUA têm meios para se defender de mísseis deste nível, sem ogivas mas com uma capacidade de produzir um impacto semelhante a cinco a dez toneladas de explosivos.
E os outros?
Israel quer impedir o Irão de construir bases duráveis na Síria e, de quando em vez, vai estragando os planos de Teerão. Os milhares de mísseis iranianos apontados para território israelita têm um efeito de dissuasão que encantaria um Netanyahu acusado de corrupção: destruir bases nucleares iranianas.
A China apelou à contenção - especialmente dos EUA - e a Rússia classificou a operação americana de imprudência. Talvez Putin tenha razão. Quem possui já mísseis hipersónicos, em relação aos quais não há sistemas de defesa capazes de os deter, pode dizê-lo sem temer represálias ou, quem sabe, a pensar já na venda ao Irão do Avangard, o primeiro de uma classe de mísseis capazes de atingir uma velocidade hipersónica e com capacidade de manobra marcada por elevado grau de imprevisibilidade. Dizem os especialistas que nem os EUA têm meios para se defender de mísseis deste nível, sem ogivas mas com uma capacidade de produzir um impacto semelhante a cinco a dez toneladas de explosivos, com velocidade que lhe permite atingir qualquer ponto à superfície da Terra num hiato de trinta minutos. Aumenta, por conseguinte, a imprevisibilidade sobre a natureza de um eventual ataque com uma arma destas - convencional ou nuclear. Washington prepara a resposta no âmbito do programa Prompt Global Strike.
O surgimento deste tipo de armas acontece num momento em que os tratados de controlo de armas do mundo se estão a desmoronar.
A corrida ao armamento hipersónico
Tendo trabalhado no contraterrorismo no Conselho Nacional de Segurança norte-americano de 1995 a 1999, Steven Simon um analista no Quincy Institute, e professor de Relações internacionais no Colby College e co-autor de "Our Separate Ways: The Struggle for the Future of the U.S.-Israel Alliance," sugeria a seguinte reflexão num artigo publicado, premonitoriamente ou talvez não, no New York Times a 2 de janeiro:
"Pense em dois pistoleiros num quarto escuro. Além disso, a hipersónica é um risco moral armado para estados com gosto pela intervenção, porque eles saltam barreiras para poderem fazer a guerra. Um adversário está a construir algo que pode ser uma fábrica de armas? Existe um indivíduo num país hostil que não pode ser preso? E se o ex-comandante da Guarda Revolucionária do Irão, Qassem Suleimani, visitar Bagdad para uma reunião e esse país souber das suas movimentações? As tentações de usar mísseis hipersónicos serão óbvias."
Há uma nova corrida ao armamento em curso. O Médio Oriente poderá ser o recreio para os protagonistas Trump e Putin experimentarem os seus novos brinquedos.
O perigo global é evidente. Este tipo de armamento quase dilui a linha entre armas convencionais e estratégicas e "o seu uso fácil e justificável - digamos, para matar um único líder terrorista em uma cidade sobrelotada - poderia facilitar a aceitação do seu uso generalizado, com consequências muito mais destrutivas".
A maior ameaça, no entanto, é que o surgimento deste tipo de armas, acontece num momento em que os tratados de controlo de armas do mundo se estão a desmoronar. Simon não tem dúvidas: "Precisamos de um acordo multilateral para limitar os arsenais hipersónicos e o seu uso, mas, infelizmente, os Estados Unidos, que teriam que assumir a liderança na orquestração da negociação de tal acordo, não estão interessados em quaisquer acordos que possam atar as suas mãos". O Presidente Trump, que declarou que "as guerras comerciais são fáceis de vencer", também acolhe de bom grado uma corrida armamentista com o argumento de que os Estados Unidos venceriam tudo e todos. Afirma este especialista que o Congresso "raramente aprovou tratados de controlo de armas" - e com o Senado nas mãos dos republicanos, parece pouco provável que um acordo que limita as armas desta classe possa fazer o seu caminho. Mas, como lembra o antigo funcionário de topo do Governo norte-americano, "assim como no início da era nuclear, quando o advento das armas nucleares se entrelaçou com a Guerra Fria emergente, um desenvolvimento novo e radical da tecnologia militar está a surgir. Precisamos canalizar a sabedoria dos prudentes controladores de armas da Guerra Fria, que entenderam a necessidade urgente de controlar armas com implicações terríveis".
Há uma nova corrida ao armamento em curso. O Médio Oriente poderá ser o recreio para os protagonistas Trump e Putin experimentarem os seus novos brinquedos. China, Índia e França, pelo menos, desenvolvem armas semelhantes. O Irão e os amigos e rivais da região são atores secundários ou mesmo meros figurantes. Mas também podem conseguir deitar a mão a estas novas armas. Até porque, bem vistas as coisas, o petróleo - tão sujo e tão sem futuro - ainda tudo compra. No fim, corremos o risco de não ficar ninguém para contar.