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Daniel Oliveira considera que a sentença que obriga a autarquia de Gondomar a desenterrar mais de mil mortos de um cemitério é uma "decisão chocante".
No seu espaço habitual de Opinião, na TSF, o comentador começa por contar a história por trás da decisão do tribunal: "Os problemas começaram com dois irmãos herdeiros de um proprietário de um terreno em Rio Tinto que pediram a alteração da área do terreno que possuíam. A área foi alterada e registada em Conservatória, mas, ao que parece, sem se basear em qualquer evidência. Os dois irmãos ficaram na posse de um terreno de 29.100 metros quadrados, que venderam à imobiliária F imóveis em 2000. Deste, a empresa vendeu à Câmara Municipal de Gondomar, um ano depois, 15.000 metros quadrados livres de quaisquer encargos ou ónus."
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Mas a história não fica por aqui. Como explica Daniel Oliveira, "a autarquia então presidida por Valentim Loureiro construiu um segundo cemitério de Rio Tinto, na zona de Triana, um arruamento e um bairro social. Só que, em 2005, dois dos herdeiros do terreno contestaram a venda que fora feita à imobiliária porque, afinal, não estaria livre de encargos".
"A decisão judicial foi tomada em 2019. Sim, ouviram bem: 14 anos depois de a ação ter sido interposta, 18 depois de a Alice ter começado a enterrar gente de Gondomar e já com 16 herdeiros ao barulho. O tribunal deu como provado que, do terreno de 10.000 metros quadrados que pertence às duas autoras da ação, 1760 metros quadrados, ocupados por metade do cemitério, terão de ser devolvidos. Sobre a parte onde estão os três prédios do bairro do Senhor dos Aflitos, que também pertence ao terreno dos queixosos, o tribunal não tomou qualquer decisão, porque eles próprios não o incluíram na ação. Não se sabe porquê, o anterior executivo nunca chamou a empresa verdadeira, responsável por este imbróglio, para o processo", refere o jornalista.
A morada de morte continua a ser, na nossa cultura, um assunto muitíssimo sensível
O tribunal decidiu que os "queixosos são coproprietários do terreno em causa" e, por isso, a Câmara de Gondomar "tem de demolir a obra edificada, removendo tudo o que for da sua pertença".
"Entre o que tem de ser removido, estão mais de mil cadáveres. Alegando que era impossível, desumano e até ilegal cumprir tal sentença, porque a lei só permite a exumação decorridos três anos do enterro, a Câmara ainda mostrou interesse em chegar a acordo com os herdeiros, solução para que os queixosos parecem estar disponíveis, mas teria de ser com todos os herdeiros. Caso contrário, a litigância continuaria. Em vez de explorar esta solução que daria trabalho, a Justiça avançou com a ação de execução da sentença", explica o comentador.
Só um juiz totalmente alienado dos sentimentos humanos consegue tomar uma decisão destas, como se fosse uma mera disputa patrimonial. Neste caso, foram vários juízes a fazê-lo, tomando decisões como se apenas pedras e metros quadrados estivessem em causa
Segundo Daniel Oliveira, a autarquia não pode chegar a um acordo com todos e o tribunal "nem sequer determinou um valor a pagar como alternativa".
"A decisão tomada criou, como é evidente, um enorme alarme social em Rio Tinto. A morada de morte continua a ser, na nossa cultura, um assunto muitíssimo sensível, tão sensível que quando a barragem do Alqueva foi construída, a mudança dos cemitérios das aldeias da Luz e da Estrela tiveram um acompanhamento especial. Só um juiz totalmente alienado dos sentimentos humanos consegue tomar uma decisão destas, como se fosse uma mera disputa patrimonial. Neste caso, foram vários juízes a fazê-lo, tomando decisões como se apenas pedras e metros quadrados estivessem em causa", atira.
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O jornalista relembra que, na sexta-feira, o Tribunal Judicial da Comarca do Porto, através do juiz de execução de Valongo, "não deu razão à autarquia e, dessa forma, obriga mesmo o município a devolver os terrenos livres de cadáveres no espaço de um ano".
"O Presidente da Câmara de Gondomar, que nada teve a ver com a compra deste terreno, já disse que recorrerá até ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, se assim for necessário. E compreende-se. Como é que uma contenda entre herdeiros à volta de umas centenas de metros quadrados passa a frente de um valor que é tão superior?", questiona, sublinhando: "Não preciso que nenhum jurista o venha explicar. Se uma sentença é inexplicável à luz de qualquer sentido de justiça e de bom senso é porque a sentença está errada. Não é por acaso que formamos juízos para aplicarem a lei como justiça humana e para procurarem soluções aceitáveis, coisa que nem foi tentada."
A decisão imoral e provavelmente ilegal do tribunal poderia ser tomada por um computador com um software pouco sofisticado de inteligência artificial, pelo menos seria mais rápido a decidir este absurdo
Daniel Oliveira defende que esta é uma "decisão chocante", que foi "sucessivamente tomada por burocratas da lei, com base numa ideia instalada que a propriedade é a única coisa verdadeiramente sagrada na nossa sociedade, acima da vida e da morte, acima dos sentimentos mais profundos das pessoas, acima de qualquer razoabilidade".
"A decisão imoral e provavelmente ilegal do tribunal, que manda desenterrar mil cadáveres por causa de uma disputa entre herdeiros, seguindo doentiamente o dogma de que a propriedade tem precedência jurídica sobre tudo o resto, poderia ser tomada por um computador com um software pouco sofisticado de inteligência artificial. Pelo menos seria mais rápido a decidir este absurdo", remata.
Redigido por Carolina Quaresma