Corpo do artigo
Quando retiro o plástico que envolve a edição física do Jornal de Leiria, entregue semanalmente pelo correio aqui em casa, e me sento para o começar a ler, um folheto de publicidade a um supermercado cai no tapete da sala. As suas cores vivas chamam-me a atenção por uns momentos antes de o amarrotar e deitar fora. Num vislumbre rápido, vi café, muita carne, réplicas para crianças de carros bons tipo Range Rover, chocolates, garrafas de vinho do Porto. Percorro o jornal e detenho-me a ler a entrevista do Bispo das Forças Armadas (D.Rui Valério) que nos diz, como se fosse uma grande descoberta, que o Natal ou no Natal o espírito fraternal e simplista foi substituído pelo consumismo desenfreado.
Continuo a ler as crónicas, reportagens e entrevistas e, por entre anúncios e "sugestões" para prendas, reparo que o espírito desta edição é crítico do tal consumismo. Que se apela a uma maior frugalidade na época. No questionário colocado a convidados vejo mais "virtude que pecado". Publicamente, todos somos mais virtuosos que pecadores.
No dia de Natal desço as escadas para ir ao ecoponto na minha rua. Esperava o pior, mas ainda é cedo e o mundo hoje acordou tarde, entretido pelas sobras de comida, pela magia dos brinquedos para crianças e adultos. Passo ali os dez minutos que a pessoa antes de mim não passou e , pelo menos, tipo o macaco da televisão, meto as coisas no sitio certo, não me importando de as empurrar para dentro em vez de as deixar no chão para os funcionários da Câmara as apanharem e misturarem, como já vi eu, num camião de caixa aberta e lhes dar sumiço sabe-se lá para onde.
Não me sinto nada virtuoso. O meu filho teve "prendas a mais". É bom miúdo, mas já tem tanta coisa que não conseguirá dar "valor" a tudo. Gosto eu e gosta a família de o ver sorrir e ele sorri com "coisas materiais". Não é nenhum iluminado precoce e não sabe ou não se interessa pelo resto do mundo. No entanto, se me pedisse para fazer greve estudantil "contra as alterações climatéricas" dizia-lhe que não. Nisso não cedia porque não há relação directa entre baldar-se à educação e ter melhor ar para respirar. Antes pelo contrário.
Eu também não sou um activista do ambiente e não participo nessas marchas. Mas meto o lixo reciclado nos buraquinhos certos, tipo o macaco. Não me sinto envergonhado por dar prendas e fazer lixo. O mundo é assim. A alternativa ao consumismo, a tal simplicidade do "less is more" é o inferno na Terra para a maioria das pessoas. Seja o que for, aquilo que atenta contra a propriedade privada, contra o direito de ter, haver e dispor do nosso dinheiro, gerado pelo nosso trabalho ou pela nossa sorte ou família rica, é maligno, satânico e o pior que pode acontecer a alguém é ser pobre ou melhor, sentir-se mais pobre que o outro. É uma aflição que não nos faz pensar no resto, no mundo, nos seus problemas ou nas suas soluções. Mesmo aflitos, "contribuímos" com a nossa opinião e passos marchados na Avenida da Liberdade em gritos contra os inimigos do ambiente. Contra mundi, contra Trump, Putin, Soros, contra o petróleo, o carvão, o lítio, contra Chineses e Indianos que agora lhes deu para comer carne. Protestamos contra todos menos contra nós, pois nós somos os bons, os melhores (que os outros), os que dizem as verdades.
O que fazer então? Editar um jornal que invoca valores franciscanos (e foi regra neste Natal, não só no Jornal de Leiria, mas em toda a Imprensa, os artigos e testemunhos "contra" a loucura do consumismo) mas que não se financia sem anunciar aquilo que procura combater? Podemos viver só do exemplo? Tipo aquelas pessoas que se alimentam só de Sol?
Olhando para o meu caso, falhei completamente este ano. Andei de avião para ir trabalhar, comi carne, comprei 3 prendas ao meu filho, fui a Lisboa mil vezes. Só não me enganei numa coisa: o Natal não é consumista. O Natal é capitalista. Assim como o mundo. Todo o mundo. Assim como nós. Todos nós. O capitalismo faz-nos sentir melhor que toda a gente, não são só as coisas, é o estatuto que as coisas dão. Nunca, mas nunca sairemos dele porque o amamos de morte. Até o homem santo precisa das suas cruzes de ouro, o Presidente do seu carro blindado, o jovem do seu telemóvel, a Igreja e o Estado das suas propriedades magnificas em todo o mundo. Não há luta de classes, porque já não há classes. Tomara o mundo que as houvesse. Há ricos e há pobres. E um grande deserto entre eles. Deus é Capital. O Diabo é o Ideal. Se me atrevesse a invocar a alternativa, o Comunismo, Ai! Jesus que lá vou eu, gulags, Stalin, roubos, traições, nacionalizações, a negação da liberdade do ter e como tal do ser. Mas será que ter tanto e tanto fazer para ter nos tornou realmente livres?
Para o meu filho estar contente eu tenho de pagar. Para o jornal sair, pagam os anunciantes. Para a Greta ralhar, pagam os seus financiadores. Para o Marcelo dar abraços, pagamos nós. Das nossas boas intenções está o fim do mundo cheio. Um Feliz Capital a todos!