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De volta a Bruxelas para as Festas fui trazido pelo Aquilino Ribeiro (quando embarcámos, pousado a descansar ao lado dele - gula cultural insaciável da TAP - estava o Júlio Pomar). Também conheci Aquilino mas nunca fomos íntimos como com Alexandre O"Neill (que, na sua versão A321, me levara dias antes para Lisboa); era muito mais velho do que eu, mais velho ainda do que o Pai que nascera em 1911, enquanto Aquilino fora suspeito de conspiração no Regicídio de 1908 (No dia 1 de Fevereiro/Mataram o Rei e o Príncipe Real/Foi triste cena de horror/No Reino de Portugal, cantaram os ceguinhos). Encontravam-se de vez em quando em tertúlia reunida ao fim da tarde no consultório do Professor Francisco Pulido Valente no Chiado, depois de saído o último doente, em que se falava de muitas coisas, nesse tempo em que havia em Portugal censura prévia dos jornais e não havia em parte alguma redes sociais modernas (nem televisão, nem internet), indo da política local à politica internacional, das artes à literatura, ou - na veia universal do morgado de Sernancelhe - também de maroteiras de fidalgos, amigações, pulhices. Uma tarde em que Aquilino insistia ser Jean-Paul Sartre homossexual - «Conta ele num livro. Foi com o Gide, numa casa de banho!» - e o Pai lhe respondeu: «Talvez seja o que falta aos nossos escritores; uma enrabadelazinha de vez em quando», o grande romancista beirão embatucou e as relações entre os dois nunca mais foram as mesmas.
Tenho contado nestas notas sentenças do Pai, não só por estas serem muitas vezes sarcasmos lapidares que me parecem merecer ser conhecidos mas também porque, não tendo eu recebido educação religiosa (como talvez já tenha dito à leitora, não fui sequer baptizado) nem sido criado como aconteceu a alguns - e algumas - do meu lugar e do meu tempo, em lares rendidos à visão do mundo de Marx, Engels, Lenine e Estaline, o meu arcaboiço moral próprio foi sendo construído pela experiência e instruído por comportamentos do ninho meu paterno. A esse propósito, lembro-me hoje de episódio ligado à tertúlia do Chiado, da qual fazia parte o pintor Abel Manta.
Em 1951, o Pai, investigando intoxicação alimentar no hospital da CUF, esteve em desacordo com a Direcção Geral de Saúde, que lhe pôs processo disciplinar. Ele demitiu-se, foi à OMS em Genebra, voltou com lugar internacional e partimos para Kabul. Durante a investigação, muitos médicos, incluindo o Professor Pulido, haviam julgado que o Pai se enganava. Na véspera da partida, com o caso esclarecido a seu favor, foi ao consultório do Chiado onde há meses não punha os pés e cuja tertúlia o ignorara, despedir-se de Pulido que o abraçou e veio na manhã seguinte no aeroporto.
Em nossa casa, ao jantar, o telefone tocou. Era Abel Manta, para se despedir do Pai. «É simpático da sua parte, Manta, mas V. não pode despedir-se de mim». O outro a rir disse qualquer coisa. «Eu parti ontem».
Nova insistência.
«Tenho imensa pena, Manta, mas não pode. Eu parti ontem.»