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Creio que Jorge Valdano não se importará que lhe roube o termo "futebol de trincheiras", não para falar do jogo propriamente dito, como ele faz, mas para canalizar a expressão para outra frente. E estou seguro de que ele estará connosco, os que entendem que há limites que nunca se podem ultrapassar.
No meio de todas as guerras em que o futebol mergulhou - e muitas delas por culpa própria - a do combate ao racismo é uma das prioritárias. Até porque, como se constata pelos sinais que surgem um pouco por todo o mundo, os tempos estão propícios para que isto descambe.
Para começar: garantidamente, se Marega não tivesse saído de campo em Guimarães, o assunto nem seria assunto. A enorme diferença está aqui. Entenda-se : se tal não tivesse sucedido, o nosso pacato e "normalizado" universo continuaria a reagir da mesma forma como fez em dezenas de casos semelhantes. Aliás, a lista é longa e bem maior do que a generalidade das pessoas julga.
Claro que toda a gente lamentaria, lá voltaria a debitar as queixas do costume e, inevitavelmente, a vida seguiria como sempre. Assim, já não é possível. Por se tratar de um caso único na nossa história desportiva (um jogador retirar-se do terreno por estes motivos) e porque o caso assumiu uma dimensão internacional de tal ordem que Portugal entrou diretamente no mapa do racismo no futebol.
E também não vale a pena ensaiar os habituais processos de desculpabilização atribuindo ao alvo a responsabilidade de se ter "posto a jeito" para levar com a seta. Enquanto o Estado de Direito for o que é, insultos racistas são crime. De resto, é exatamente esta a leitura que o mundo civilizado está a fazer, na Europa e fora dela. Nem podia ser de outra forma.
Posto isto, é tempo de definir as tais trincheiras. E há mesmo trincheiras no futebol, mas não aquelas que, por cá, têm imenso sucesso. Ou seja, as que derivam da radicalização da cultura clubística (que esmaga sem apelo nem agravo a cultura desportiva), insistindo numa guerra civil comunicacional, sustentada por direções de propaganda e ampliada pelo eco da chamada "militância social".
As verdadeiras trincheiras não são as dos interesses individuais dos clubes. Situam-se, sim, nas frentes de combate que têm a obrigação de defender o futebol contra todas as formas de violência (sendo que o racismo é, obviamente, uma delas). É uma das tais situações em que se está de um lado ou do outro, porque o "condeno, mas" é a opção de quem, de facto, não tem grande vontade de...optar.
Mas quem deve assumir as rédeas do combate? A única verdadeira resposta é todos. Abaixo disto haverá sempre falhas e, consequentemente, uma ação inútil.
Em primeira instância são as autoridades que têm a responsabilidade de aplicar - e fazer cumprir - a lei. A instauração de um inquérito por parte do Ministério Público, enquanto a PSP analisa as imagens de videovigilância para identificar os autores dos insultos, são passos que deixam já um primeiro sinal importante para a sociedade. Muito mais do que as declarações dos responsáveis políticos, naturalmente compreensíveis, mas que nos tempos que correm soam a muito pouco. Daí que, igualmente, se aguarde com natural curiosidade que tipo de desempenho vai ter a Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto em todo este processo.
Mas, por outro lado, sem punições à altura, de nada servem as boas intenções. Bem sei que a justiça comum tem os seus tempos próprios, mas a justiça desportiva não pode ficar à espera do que venha do outro lado. Daí a necessidade de rever algumas das normas atuais, de modo a evitar equívocos interpretativos tão do agrado dos clubes portugueses. Se for para fazer jogos à porta fechada, pois então que seja mesmo assim. Tal como não se pode aceitar - como já sucedeu - que um clube seja multado por cânticos racistas onze (!) meses depois dos acontecimentos.
Só que ainda falta uma face a este triângulo. Sim, os clubes, eles mesmos. Só para perceberem o alcance : bem recentemente, o Espanyol de Barcelona identificou os doze adeptos (nove deles sócios) responsáveis pelos insultos racistas a Iñaki Williams, do Athletic Bilbao. Assumiu logo a possibilidade de expulsá-los do clube, enviou o relatório à Comissão de Disciplina Social para que esta tomasse medidas e cedeu todos os dados às entidades policiais para averiguação de responsabilidade penal. Creio que não é preciso explicar o peso que uma atuação destas tem.
Apenas uma palavra para os que, algo displicentemente, lembram que Portugal não apresenta ainda os graves sintomas nesta área que já atingiram outros países. É absolutamente verdade. Mas também é exatamente por isso que temos a vantagem de atacar o mal enquanto é tempo. Se a quisermos aproveitar, bem entendido.