Corpo do artigo
No filme Fight Club, a certa altura, um dos personagens diz que "compramos coisas de que não necessitamos, com dinheiro que não temos para agradar a pessoas de que não gostamos". Esta frase veio-me à memória ao ler um artigo do Politico, o principal jornal europeu, que descrevia de forma embaraçante alguns dos gastos com que a presidência portuguesa da União Europeia pretende "agradar" à Europa. Esses gastos são apresentados como supérfluos e incompreensíveis, em particular, mas não apenas, no quadro de uma presidência que, em virtude da pandemia, irá ter poucas ou nenhumas reuniões presenciais. É importante dizer que não é incomum os países oferecerem pequenas lembranças simbólicas, como uma gravata ou um lenço, com o logo da sua presidência. O que chocou o jornal europeu foi, não apenas a dimensão dessas despesas, mas a sua natureza. Algumas são apresentadas como incompreensíveis: fatos para motoristas, por ex., quando é de supor que os motoristas do Estado já os têm. Outras são despesas supérfluas que, num contexto de crise económica e social, são difíceis de justificar. E existem ainda despesas que se tornaram totalmente desnecessárias face ao facto de a presidência ter deixado de ser, em boa medida, presencial.
TSF\audio\2021\03\noticias\08\08_marco_2021_a_opiniao_miguel_poiares_maduro
Isto levanta, inevitavelmente, fortes suspeitas de que essas empresas foram criadas com o simples objetivo de virem a beneficiar desses contratos do Estado.
Poder-se-ia pensar que parte dessas despesas tivessem sido planeadas, e contratadas, muito antes de sabermos que a presidência iria ter lugar num contexto de pandemia. Infelizmente, viemos a descobrir o exato contrário. Um artigo do Observador permitiu-nos ficar a saber que, pelo menos, uma parte significativa dos contratos foi feita pouco antes do início da presidência e, consequentemente, por ajuste direto. Mais de 200 contratos, correspondendo a um total de 8 milhões de euros em ajustes diretos. É assim ainda mais incompreensível que, tendo o Estado português, esperado até tão tarde para fazer os contratos não tenha tido em conta que, face às restrições impostas pela pandemia, muitos já não se justificavam. Mas o pior é que ficámos também a saber que alguns desses ajustes diretos foram atribuídos a empresas com poucas semanas de existência e sem qualquer atividade anterior. Isto levanta, inevitavelmente, fortes suspeitas de que essas empresas foram criadas com o simples objetivo de virem a beneficiar desses contratos do Estado. Até agora, não ouvimos qualquer justificação do governo, mas também não houve qualquer clamor público a este respeito. Que o governo não se queira justificar não é aceitável, mas percebe-se. Que não tenhamos a capacidade cívica de impor essa justificação é o mais preocupante. Apenas a Associação Transparência e Integridade o exigiu.
O que ninguém parece saber é que a lei que rege o atual programa de fundos já impõe essa transparência num portal onde deveriam constar os apoios, beneficiários e resultados contratualizados e atingidos.
Isto lembra-me a forma como se tem falado publicamente da necessidade de ter um portal da transparência para os próximos fundos europeus, onde possa ser possível consultar todos os apoios e investimentos feitos. O que ninguém parece saber é que a lei que rege o atual programa de fundos já impõe essa transparência num portal onde deveriam constar os apoios, beneficiários e resultados contratualizados e atingidos. Talvez devêssemos começar por exigir que se cumpra esta obrigação legal em vez de aceitar que seja convertida em mais uma mera promessa para o futuro.
Com exemplos destes perde-se legitimidade para qualificar como repugnantes manifestações de desconfiança dos nossos parceiros europeus.
Substituímos o que devíamos, e até já podíamos fazer, por novas promessas do que iremos fazer. Fechar os olhos serve-nos para ignorar o que não estamos a fazer e sonhar antes com que o desejaríamos fosse feito no futuro. Mas os outros medem-nos, não pelo que dizemos que iremos fazer, mas sim pelo que fazemos agora. Se continuarmos a prometer ser diferentes sem mudar, podemos enganar-nos a nós próprios, mas não aos outros. Com exemplos destes perde-se legitimidade para qualificar como repugnantes manifestações de desconfiança dos nossos parceiros europeus. Não bastará, seguramente, continuar a comprar-lhes coisas, com dinheiro que não temos e não gostando deles.