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Daniel Oliveira defende que há um "problema estrutural de violência nas forças de segurança e um problema estrutural de racismo no país" - que se torna mais evidente nas forças de segurança - e diz-se cansado de "tanto sonso espantado por uma coisa que só espanta quem tem vivido em negação".
No seu espaço de Opinião na TSF, o cronista recorda o que levaram a cabo sete militares da GNR em Odemira sobre imigrantes do Bangladesh, Nepal e Paquistão, o que aconteceu no SEF e na esquadra de Alfragide para sublinhar que "enquanto país recebemos mal os imigrantes e as nossas forças de segurança não têm uma cultura de respeito pelos direitos humanos ou sequer de respeito pela Lei", com o regresso "em força" da "cultura de arbitrariedade que tinha recuado nos anos 90".
Em Odemira, onde os soldados se filmaram uns aos outros, partilhando depois os vídeos, não "houve um outro elemento indisciplinado, foi grande parte do posto de Vila Nova de Milfontes".
Ou Odemira tem o enorme azar de concentrar ali todos os sádicos da GNR, como Alfragide teve o enorme azar de concentrar na sua esquadra muitos racistas, ou temos de enfrentar o problema com ele é.
"Ou Odemira tem o enorme azar de concentrar ali todos os sádicos da GNR, como Alfragide teve o enorme azar de concentrar na sua esquadra muitos racistas, ou temos de enfrentar o problema com ele é", explica Daniel Oliveira, que alerta que o sentimento de impunidade "cria as condições para que os monstros que habitam em muitos humanos venham ao de cima".
A cultura de impunidade ganha dimensão pelo facto de, apesar de o processo "já estar avançado, das provas já estarem as mãos das autoridades há bastante tempo e de outro processo já ter sido julgado, cinco dos sete militares continuam, dois anos e meio depois dos factos, ao serviço, sem qualquer suspensão preventiva, num meio pequeno, onde se continuam a cruzar com imigrantes. O que quer dizer que aqueles imigrantes continuaram, durante todo este tempo, em risco sem ter a sua segurança garantida". Dois militares foram suspensos por serem reincidentes.
Estou certo que a grande maioria sente repugnância por este comportamento, mas há uma continuada confusão entre generalização - que nunca se deve fazer - e deteção de problemas estruturais.
"É evidente que a maioria dos militares da GNR não se comporta desta forma e estou certo que a grande maioria sente repugnância por este comportamento, mas há uma continuada confusão entre generalização - que nunca se deve fazer - e deteção de problemas estruturais", ressalva Daniel Oliveira.
O cronista assinala que "basta ouvir o discurso do Movimento Zero", uma organização que diz colocar "em causa a segurança interna, mas é tolerada pela direção nacional da PSP" e de alguns dos sindicatos criados pela extrema-direita para perceber que "a arbitrariedade é vista como um direito por muitos agentes e quem a recusa é tratado como um amigo de bandidos".
No seguimento do episódio de Alfragide, só "dois dos oito polícias" condenados por sequestro e ofensas à integridade física qualificada tiveram sanções disciplinares, "um deles porque cumpre pena efetiva, e mais três desses condenados, que viram os seus processos arquivados depois de terem sido aplaudidos por camaradas seus quando foram ao tribunal, aí andam ao serviço nas ruas deste país, armados, como se nada tivesse acontecido".
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Para os restantes agentes, fica um recado que é "óbvio": "Podem espancar pessoas na esquadra, o emprego está garantido."
Daniel Oliveira compara a "benevolência com que a direção nacional da PSP tratar estes casos de violência" com a "firmeza com que aplicou uma suspensão ao agente Manuel Morais por criticar André Ventura" - o mesmo agente que acabou por ser afastado da direção do "maior sindicato da polícia por se atrever a dizer que há racismo na PSP" -, para defender que tal basta para "perceber quais são as prioridades do comando e dos sindicatos da polícia".
Também a leitura dos relatórios do Comité Europeu contra a Tortura ou da Comissão Europeia, ou a audição dos peritos da ONU que vieram a Portugal, basta para "perceber que a violência com motivações racistas é um problema estrutural nas nossas forças de segurança".
São presa fácil da arbitrariedade sádica de quem acredita que, tendo uma arma e uma farda, tudo lhe será permitido.
No caso de Odemira, os imigrantes estão "totalmente desprotegidos e são presa fácil da arbitrariedade sádica de quem acredita que, tendo uma arma e uma farda, tudo lhe será permitido". As vítimas "não falam a língua, não têm acesso a advogado e não podem recorrer a polícia porque é ela mesma que os agride", além de terem medo de "perder o emprego e serem expulsos do país".
O espanto a nível local é também criticado como "hipócrita" por Daniel Oliveira, que assinala que "o meio é pequeno e aqueles cowboys são conhecidos da terra, mas quando não nos toca, é mais fácil não olhar".
Os imigrantes são "os mais desprotegidos de todos porque assim interessa que seja para que possam ser devidamente explorados em benefício da nossa economia", acabando o abuso policial por ser um "tremendo efeito colateral da forma geral como são tratados".
"A culpa é mesmo nossa" e a reação de condenação e choque do poder político foi igual à que se seguiu aquando da morte de Ihor Homeniuk no aeroporto de Lisboa, às mãos do SEF: "Sem qualquer conclusão política mais séria, sem qualquer reflexão estrutural, tratado apenas como mais um episódio."
Também a oposição de direita "não mostrou grande interesse pelo tema", num momento em que Eduardo Cabrita já não estava à frente do ministério da Administração Interna para poder "fragilizar o Governo".
"Nada a ver com o interesse que há poucos meses exibiu em defesa dos direitos de propriedade - na realidade inexistentes - dos veraneantes do resort da Zmar, também em Odemira", destaca Daniel Oliveira. "Não é só para aqueles GNR que a dignidade e vida dos mais desprotegidos está no fundo de todas as prioridades. É para o poder político e para o país."
Não estamos perante uma transmissão local, mas comunitária, e já não chega agir e isolar cada caso concreto: é preciso ter uma reação estrutural.
Se neste caso "foi o próprio comandante da GNR que apresentou queixa", significa que "é óbvio que ao se dizer que há um problema estrutural, não se diz que todos ou a maioria dos elementos das forças de segurança são cúmplices da violência", mas sim que as "reações episódicas à ponta de um iceberg que esconde muitíssimos mais casos não tem sido proporcional à dimensão do problema".
Num recurso ao vocabulário pandémico, "não estamos perante uma transmissão local, mas comunitária, e já não chega agir e isolar cada caso concreto: é preciso ter uma reação estrutural".
*texto redigido por Gonçalo Teles