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Sabia que os Estados da União Europeia estão, neste momento, a transferir mais dinheiro para Rússia, para importar o seu gás, do que antes de esta invadir a Ucrânia? Este paradoxo, que desafia o nosso compromisso moral, deve-se a quão dependente a União Europeia está do gás russo. Se a Rússia depende fortemente das suas exportações energéticas para sustentar o seu orçamento e forças armadas, Putin também sabe que 40% do gás europeu vem da Rússia. Nalguns países, como a Alemanha ou Itália esta dependência supera os 50%. É isso que explica que continuemos a financiar a Rússia enquanto a acusamos de crimes contra a humanidade.
Na verdade, não apenas não interrompemos as importações de energia como ainda não suspendemos ou denunciámos o Acordo de Parceria e Cooperação com a Rússia cujo Artigo 2º estipula, e cito: "O respeito dos princípios democráticos e dos direitos humanos, definidos nomeadamente na Acta Final de Helsínquia e na Carta de Paris para uma nova Europa, presidirá às políticas internas e externas das partes e constituirá um elemento essencial da parceria e do presente acordo."
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A cautela europeia estende-se às sanções aplicadas a oligarcas e empresas russas: aqueles envolvidos no setor energético ficaram de fora. Alguns até são cidadãos europeus. Podia falar de Abramovich mas estou a pensar no caso, particularmente escandaloso, do ex-Chanceler (o equivalente a primeiro-ministro) alemão Gherard Schroeder. Foi Schroeder que, duas semanas antes de abandonar o cargo de Chanceler, celebrou o acordo com Putin para a construção do gasoduto Nord Stream 1, ligando a Alemanha e a Rússia, sendo que um ano mais tarde ocupava a posição de presidente da empresa responsável pelo gasoduto. Desde então Schroeder tem multiplicado os cargos em empresas do regime russo e fortalecido a sua amizade com Putin. Mesmo após a invasão, Schroeder tem recusado abandonar esses cargos.
Pelos vistos, não somos o único país com problemas sérios com ex Primeiro Ministros. Debaixo de forte pressão da opinião pública alemã, os sociais-democratas parecem finalmente preparados para o expulsar do partido, mas quanto às sanções europeias, até agora... Nada, seja para ele ou outras figuras e empresas do setor energético.
Com isto, não quero acusar toda a Europa de hipocrisia. Quero apenas ilustrar o quão difícil vai ser manter o nosso compromisso moral com a Ucrânia. Até que ponto vai esse compromisso, perante os custos que pode impor à Europa.
É aquilo para que tenho alertado: Putin acredita que a nossa vontade moral é fraca e irá ceder perante os custos que cortar a interdependência económica também traz à Europa. Os ucranianos pedem-nos que entremos na guerra militar quando ainda nem sequer é claro até onde estaremos dispostos a ir na guerra económica. Cumpre-nos provar que Putin não tem razão.
Pela sua parte, ucranianos, mas também alguns corajosos russos, têm-nos procurado alertar e guiar moralmente. Esta é a primeira guerra de dimensão mundial da era das redes sociais. Qualquer ucraniano ou russo munido de um telemóvel e acesso às redes sociais pode registar e denunciar ataques a civis, prisões de manifestantes ou exibir a resistência ucraniana. Isso tem sido fundamental para mobilizar a opinião pública nos diferentes Estados que, por sua vez, pressiona os governos nacionais para fazerem mais. A dúvida é se iremos continuar esta indignação e a pressão sobre os nossos governos para lá do ciclo mediático, quando a guerra e ocupação da Ucrânia deixar de ser novidade e de abrir telejornais. Quero acreditar que sim, que somos melhores do que Putin pensa que somos.