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Não são apenas os vírus que são oportunistas. Os políticos também podem sê-lo, aproveitando a necessidade de decretar estados de emergência para fazer aprovar medidas ou políticas que são intoleráveis sob qualquer ponto de vista e em qualquer circunstância.
É o caso de Orbán, o Primeiro-Ministro húngaro que, a propósito do estado de emergência, e entre outras medidas mais ou menos comuns aos estados de emergência decretados por essa Europa fora, decidiu fechar o parlamento.
Ora, nem na Segunda Grande Guerra o parlamento inglês fechou. Churchill teve aliás, durante a Guerra, duros debates parlamentares, sujeitando-se ao controlo e escrutínio daqueles que são, numa democracia liberal, os representantes do povo.
Aliás, nos vários países europeus que têm recorrido ao estado de emergência, os parlamentos continuam abertos, a funcionar, uns em versão reduzida, outros em versão de comissão permanente, todos eles assegurando um dos esteios fundamentais da democracia: o controlo parlamentar dos executivos, o controlo popular dos executivos.
O que Orbán fez foi dizer aos húngaros e ao Mundo que não aceita ser sindicado nem controlado pelo seu povo. Ora, isto é inadmissível numa democracia liberal. Perde-se a legitimidade democrática, E todas as restantes medidas decretadas por Orbán, mesmo aquelas que são comuns à dos restantes estados de emergência na Europa, ganham um novo contexto e uma nova interpretação. Deixam de poder comparar-se e assumem-se como consolidação autoritária.
É que não se pense que isto se trata de um episódio, um excesso casual, um pormenor. Pelo contrário, isto é a confirmação de uma trajectória de Orbán, que um dia foi defensor da liberdade, mas que há muito vem manifestando o seu apreço pelo autoritarismo, praticando-o, e pela chamada democracia iliberal, um absurdo conceito de que é cultor, sem falar, pelo meio, das manifestas desconsiderações pela liberdade de cada um ser o que quer e viver como quer.
Já não é a primeira vez que falo sobre isto e sobre Orbán, nomeadamente na série de artigos que escrevi sobre populismo e autoritarismo e polarização - tudo preocupantes sinais dos nossos tempos; e sou muito pouco sensível aos que insistem em silenciar o que se passa na Hungria só porque o passado de Orbán tem méritos, só porque há quem faça pior ou só porque à esquerda também há casos preocupantes. Tudo isso pode ser verdade, mas o que Orbán faz não deixa de ser verdade, como não deixa de ser verdade o silenciamento da imprensa ou o capitalismo de Estado destinado a silenciar e condicionar adversários. Vale muito a pena ler o que Anne Applebaum tem escrito na The Atlantic ou no New York Times sobre o que se passa na Hungria.
Isto significa que estamos a partilhar a nossa soberania, no quadro europeu, com quem não respeita o básico princípio de que um governo responde perante o parlamento. Fechar o parlamento é algo tão evidente que não pode ser disfarçado nem matizado. Não é tolerável, e seria bom que as instituições europeias agissem, com os instrumentos disponíveis, de forma a trazer a Hungria para as fronteiras da democracia liberal. Como aliás seria que PSD e CDS, partidos que com o partido de Orbán fazem parte do mesmo partido europeu, tomassem a dianteira desta matéria: diz-me com quem andas, dir-te-ei que és.