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Muitos observadores gostam de comparar o candidato a presidente brasileiro Jair Bolsonaro com o americano Donald Trump, dadas as semelhanças de estilo, a encarnação de um voto de protesto e mesmo a decantada incompatibilidade entre os personagens e a liturgia do cargo.
Eu prefiro apontar as diferenças, a começar pelo fato de que as democracias no Brasil e nos Estados Unidos são incomparáveis, para não falar que Trump chegou ao poder "por dentro", montado em um dos dois grandes partidos estabelecidos. Bolsonaro encarna um "outsider" mais efetivo, ainda que seja um produto das franjas do "establishment".
Isso dito, nesta semana o polémico deputado brasileiro ganhou o seu "caso Rússia" para lidar caso confirme o que todas as sondagens apontam e seja eleito presidente no próximo dia 28.
Trata-se da revelação, feita por reportagem da Folha de S.Paulo, de que empresários simpatizantes de sua candidatura usam empresas especializadas em "impulsionar" mensagens instantâneas do popularíssimo aplicativo WhatsApp, o mais usado no Brasil. Os textos visavam, segundo a reportagem, atacar a candidatura rival de Bolsonaro, a de Fernando Haddad, sendo enviado para milhares de grupos de usuários, de forma multiplicadora.
Isso em si não é crime, mas há dois complicadores.
O primeiro é que se houve dispêndio nesse processo durante a campanha eleitoral sem o devido registro junto à Justiça Eleitoral. Sem isso, é o que se chama no país de "caixa dois", financiamento ilegal -além de tudo, desde 2015 é proibido a empresas fazerem doações eleitorais. É uma zona cinzenta, dado que o candidato diz que nunca pediu para ninguém fazer tal ação.
O segundo aspeto é saber se as empresas utilizaram bases de dados fornecidas por terceiros, o que é proibido por lei. Trata-se de um agravante, embora nem empresários, nem candidato são obrigados a saber o que os fornecedores fazem.
De forma imediata, Haddad pediu a impugnação da candidatura de Bolsonaro e realização da segunda volta com o terceiro colocado na primeira etapa da disputa. Isso não irá acontecer, nem faz sentido: é preciso uma investigação profunda sobre o que realmente aconteceu, algo que não ocorre do dia para a noite.
Haddad foi além, em sua ação na Justiça Eleitoral, e pede basicamente a suspensão do serviço do WhatsApp caso não tenha sua demanda imediata atendida. Posa de vestal analógico como se não fosse lugar-comum o uso desses artifícios digitais por todos os partidos políticos.
Independentemente do mérito, o fato é que essa investigação será o que a apuração da interferência russa em favor do Partido Republicano na eleição de 2016 é para Trump: uma ameaça constante, uma espada de Dâmocles à espreita.
De forma usual, a Justiça Eleitoral deve levar de um a dois anos para finalizar sua apuração. A rigor, se for comprovado que empresários doaram ilegalmente com o conhecimento de Bolsonaro ou de seu estafe, ele pode até ter sua eventual eleição cassada.
Em situações política normais, isso seria um freio a um comportamento muito voluntarista de um presidente Bolsonaro já à saída de seu mandato. Mas tudo caminha para o deputado ter a maior votação em segunda volta da história brasileira, o que lhe dará capital político inicial muito grande. Como Trump, poderá apenas reclamar dos adversários e dobrar a aposta.
*Igor Gielow é repórter especial da Folha de S. Paulo