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Há 10 anos, uma cadeia de supermercados exigiu a instauração de um processo-crime por causa de um roubo de um saco de feijão verde no valor de 77 cêntimos. O Ministério Público entendeu que se tratava de uma bagatela e que, por isso, se devia dispensar o inquérito. Os advogados da empresa recorreram, mas tiveram de pagar 204 euros para se constituírem assistentes.
Uns anos antes, uma idosa de 72 anos teve de se defender em tribunal por ter saído do supermercado com um creme no bolso do casaco. Valor do esquecimento (para a defesa) furto (para a grande cadeia de distribuição) 2 euros e 79 cêntimos. A rede de supermercados exigia uma indemnização de 300 euros à velhinha pelos transtornos causados.
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O ano passado, os supermercados começaram a pôr alarmes em latas de atum e pequenos sacos de congelados ou garrafas de azeite, por causa desses horrorosos delinquentes que roubam para comer ou têm esquecimentos considerados inaceitáveis. Seja quando exigem julgamento, seja quando colocam alarmes em latas de atum, o que eles querem dizer é muito simples: "neste supermercado ninguém rouba!"
Mas eis que chegamos a 2023 e descobrimos que a máxima mudou. Já não se trata de dizer "neste supermercado ninguém rouba", passou a ser: "neste supermercado só os donos estão autorizados a roubar".
A ASAE está no terreno a confirmar aquilo que já todos sabemos. Não se trata de um saco de feijão ou um creme para as mãos, é uma ganância generalizada. Nas três maiores cadeias de supermercados em Portugal, foram detetadas margens de lucro brutas de 52% na cebola, 48% na laranja, 45% na cenoura e nas febras de porco ou 43% nos ovos.
O engano aos clientes passa por publicitar promoções a um determinado preço que depois não se verificam na caixa ou embalagens que dizem ser de um quilo mas não pesam mais de 800 gramas. Inspetores encontraram casos em que estavam a ser cobrados em caixa preços 70% superiores aos que estavam marcados nas prateleiras. No total, foram instaurados 51 processos-crime por especulação.
Num país de tantas injustiças nem a inflação quando chega é para todos. Os de menores rendimentos, aqueles que gastam tudo o que têm no mais básico dos cabazes, os que deixam tudo no supermercado, onde a inflação dos produtos alimentares é de 27%, três vezes mais que a inflação global, ainda estão sujeitos a todos estes alegados roubos. É melhor dizer assim, não vão os donos das grandes cadeias de distribuição ficar ofendidos por nos referirmos a eles como ladrões de colarinhos brancos. Embora eu não me lembre de pior ganância do que aquela que aceita enganar até os mais pobres dos pobres.