O triunfo histórico do Leicester City na Liga inglesa assenta no aproveitamento de uma série de factores. Uns mais recentes, outros já antigos. Against all odds.
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Desde logo, os foxes apanharam os "multi-milionários" e lógicos candidatos ao título pensando que, mal ou bem, lá chegariam e que seria business as usual. Mas como? Se o Manchester United está mergulhado numa crise de identidade, após uma era dourada e de intenso domínio, sofrendo as agruras do período pós Ferguson, mesmo com um orçamento "despudorado", que lhe permite, por exemplo, o capricho de chegar aos 80 milhões de euros pelos serviços de Anthony Martial? E que se arrisca, mesmo com o larguíssimo investimento, a nem sequer garantir a qualificação para a pré-eliminatória da Liga dos Campeões. Depois do erro de casting com David Moyes, Louis Van Gaal falhou em implementar um novo estilo digno de Old Trafford e um modelo ganhador, com os meios que teve à disposição.
Vai ser interessante a luta pelo quarto lugar, nas jornadas que sobram, justamente com o vizinho City. Também ele endinheirado. Também esse, há pouco tempo, campeão por duas vezes e talvez, por estes dias, demasiadamente focado ou mesmo obcecado no passo seguinte. Pois, que bom seria abrir as portas do clube a Pep Guardiola, na próxima temporada, tendo o "caneco" da Liga dos Campeões para mostrar ao catalão. Além disso, Manuel Pellegrini sairia pela porta grande, com o saco cheio de dinheiro e honrarias do Sheik Mansour, imitando Jupp Heynckes, campeão europeu pelo Bayern de Munique antes de se reformar.
O Chelsea, que Mourinho trabalhou para tornar campeão na segunda passagem por Stamford Bridge, mesmo com os melhores que o dinheiro pode comprar, não resistiu a uma terceira época sob o comando do treinador português. Ficou mesmo no ar o terrível cheiro a "boicote" por parte de estrelas muito bem pagas e a quem sobra talento, mas que pouco mais fizeram do que disparar o alarme por estarem perto da zona de descida. Antonio Conte já está contratado, mas as dores de cabeça continuaram com Hiddink. E o actual nono lugar é só o reflexo de como os milhões por vezes não chegam para construir os alicerces necessários a conquistas.
No Arsenal, o tempo de Arsène Wenger esgotou-se. E parece que até os adeptos mais conservadores já concluíram isso. Aquele projecto precisa de ser renovado e virar-se para a conquista de títulos verdadeiramente importantes, como o campeonato ou - porque não - a Champions. Chelsea did it. Not long ago.
O Tottenham chegou-se à frente com um treinador que tem subido a pulso em Inglaterra. Mauricio Pochettino construiu uma boa equipa, herdando um plantel em sub-rendimento, valorizando-o. Derrapou perto do fim. Mas os Spurs há muito que não mostravam tão bom futebol. E atenção à próxima época.
O Liverpool é um monstro adormecido, a nível nacional, quando se fala da conquista de campeonatos, tendo sido já ultrapassado nesse particular pelo Manchester United (18 vs 20). Campeão Europeu em 2005 e vencedor da Taça UEFA em 2001, festejou pela última vez o um triunfo no campeonato em 1990. E 26 anos sem ganhar é muito tempo. Taças de Inglaterra e da Liga não são suficientes. Brendan Rogers bem quis mudar esse paradigma em 2013-2014, mas não resistiu ao fulgor financeiro e à intensa ambição do City, que venceu nessa época o segundo título nacional em três temporadas e o quarto na história do clube. Longe estão por isso os tempos de Bob Paisley e Bill Shankly, nas gloriosas décadas de 70 e 80, em que se sucederam títulos nacionais e europeus. Agora é a vez de Jürgen Klopp. Como diria o outro, deixem-no trabalhar.
Neste contexto apareceu o Leicester City. Aproveitou com muito mérito o cenário e fez pela vida. Claudio Ranieri conseguiu unir alguns jogadores talentosos outros nem tanto, mas muito ambiciosos, e tornou-os numa "equipa com um só coração". A frase é dele. Um veterano italiano que passou por grandes clubes europeus, um homem não ganhou muito mais do que Supertaça Europeia com o Valência e nunca tinha sido campeão numa Liga principal, até hoje. Aos 64 anos, é reconhecido através de um clube que lutava para não descer.
Com alguns milhões para gastar, mas em menor escala é certo, Ranieri teve um goleador - Jamie Vardy - que até há pouco tempo andava nos escalões secundários, que era trabalhador fabril, cujos golos (22) valeram, por si só, 21 pontos ao Leicester, algo que nenhum outro jogador conseguiu esta época na Premier League. "A working class hero is something to be", cantou John Lennon, de Liverpool. Vardy, o herói da classe trabalhadora; com um Ryad Mahrez a funcionar em pleno, como uma espécie de farol ofensivo, que encantou e transbordou talento, até ser considerado o melhor jogador da Liga inglesa (17 golos/10 assistências); com N'Golo Kanté, que custou oito milhões de euros, proveniente do Caen, já com estatuto de internacional francês, adquirido este ano, a afirmar-se como um pulmão incansável; com Drinkwater a ter sede de provar ao Manchester United, onde chegou aos nove anos, que provavelmente fez mal em dispensar este médio internacional, com um percurso nas camadas jovens de Inglaterra, para sucessivos empréstimos, antes de cedê-lo definitivamente ao Leicester.
Depois há Kasper Schmeichel, última barreira para lá de um quarteto defensivo musculado e disciplinado. E filho de peixe sabe nadar. Mas enquanto o pai Peter marcou uma era no gigante Manchester United, Kasper ganhou o primeiro grande título num clube de nome modesto. O mérito deste feito também passa por este rapaz que há 17 anos, ainda criança, fazia umas defesas depois dos treinos do pai, vestido a rigor, no antigo Estádio José Alvalade. Sempre quis ser aquilo que é hoje: um guarda redes com qualidades acima da média, que utiliza toda a envergadura disponível, como se estivesse numa baliza de andebol, a que acrescenta bom jogo de pés. Subiu a pulso e juntamente com Joe Hart, do Manchester City, tem o melhor registo de jogos sem sofrer golos na Liga inglesa. Nesta família Schmeichel os momentos de superação no futebol estão lá: quem não se recorda do brilharete da selecção dinamarquesa, campeã no Euro92 ou do milagre de Barcelona, protagonizado pelo Manchester United em 1999, quando conquistou a Liga dos Campeões frente ao Bayern de Munique. Against all odds.