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Esta semana, foram lançados dois cocktails molotov contra a fachada do prédio onde está instalada a produtora da Porta dos Fundos, supostamente em reação ao programa "A Primeira Tentação de Cristo", que retratava Jesus como homossexual.
Trata-se de um intolerável ataque à liberdade de expressão: ninguém tem o direito de atentar contra a vida ou contra a integridade física de quem quer seja como reação ou resposta à expressão de uma opinião, por mais funda e justa que seja a nossa indignação.
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Como intoleráveis são os argumentos destinados a mitigar a crítica a este ataque, a contextualizá-lo, como quem diz que a Porta dos Fundos até estava a pedi-las ao gozar de forma tão brejeira e gratuita com algo tão profundo e íntimo como a fé.
A este respeito, costumo ouvir dois argumentos que considero perigosos.
O primeiro é o de que há limites que cada um de nós considera intransponíveis e que, uma vez ultrapassados, ferem de uma forma superior e gratuita. Eu não contesto a existência desses limites. Aliás, utilizei acima a expressão funda e justa indignação e não foi por acaso: há opiniões e expressões que vão para além do que estamos dispostos a aceitar, que atentam contra o mais profundo e íntimo de nós. Todos nós os temos e eu também tenho os meus.
Sucede que a forma de reagir a esses ataques deve circunscrever-se ao campo da opinião e expressão. Ninguém deve ser impedido de protestar contra um programa, de fazer abaixo-assinados a pedir ao canal que reconsidere ou que o retire, de organizar manifestações para demonstrar desagrado. Tudo isso é legítimo. Como é legítimo, avanço já, que o canal decida dar ouvido aos protestos, cancelando o programa, ou ignorar os protestos, mantendo-o. Um canal privado deve seguir os critérios que entender, e não entro no peditório dos que acham que o cancelamento do programa, ou a sua manutenção, são um qualquer ataque à liberdade - até porque tal decisão deve igualmente ser criticada por quem o entender.
Pode parecer coisa pouca, isto de circunscrever a nossa indignação ao campo da opinião, sobretudo quando consideramos o ataque tão brejeiro e gratuito. No entanto, é a única forma que uma democracia liberal pode aceitar, porque não é concebível que um Estado, através de uma qualquer Comissão, ande por aí a definir limites à opinião (falo de opinião, não falo de incitamentos à violência nem difamações nem outros tipos de crime), penalizando quem os ultrapasse. É fácil imaginar esses limites se formos nós a defini-los, porque nos parecem sempre claros e justos. Mas basta dar esse poder a outro para percebermos o quão diferentes seriam os critérios.
A única forma que temos de conciliar as nossas diferentes visões do Mundo é através da liberdade, desde logo a de expressão. E, sim, a liberdade de expressão inclui a liberdade de nos expressarmos contra a expressão do outro, porque anda por aí muita gente que confunde liberdade de expressão com direito a ter a última palavra, como se contestá-la fosse sinal de censura.
O segundo argumento é o de que a ausência de reação a estes programas como que legitima a continuação da ofensa gratuita, transformando a fé cristã na mais vulnerável a esses ataques, ajudando a esconder que a fé cristã é a mais perseguida e atacada em todo o planeta.
É de facto pouco conhecido que o cristianismo é perseguido violentamente em muitas parte do Mundo, talvez porque tenhamos uma visão demasiado ocidentalizada do que se passa no nosso tempo. E esse facto deve merecer atenção e destaque e reflexão, mobilizando todos os que defendem a liberdade religiosa.
Ninguém pode ser perseguido pela sua fé, assim como ninguém pode ser obrigado a circunscrever a sua fé às quatro paredes da sua casa, como se fosse algo de clandestino ou como se a demonstração da fé ofendesse quem quer que seja. A vivência exterior da fé faz parte da nossa liberdade, e estarei sempre contra aqueles que a querem limitar à casa de cada um.
E é também um facto que gozar com os cristãos é muito mais inconsequente do que gozar com outras religiões, uma vez que há grupos terroristas e de fanáticos de outras religiões que, sentindo-se ofendidos, reagem com violência e terror.
Mas essa covardia, se quisermos colocar as coisas dessa forma, pode ser denunciada, gozada, exposta, no campo da opinião. O que não pode é ser resolvida com a constituição de grupos fanáticos dispostos a atuar como atuam fanáticos de outras religiões, contaminando o cristianismo, manchando-o.
Não consigo, por isso, relativizar este ataque, como quem diz que a Porta dos Fundos andava a pedi-las e que o grupo estivesse a gozar com muçulmanos a coisa teria sido muito pior. Não é esse o Mundo em que quero viver nem é esse o caminho para preservar a democracia liberal que quero trilhar. Nem é essa, acredito profundamente, a mensagem inscrita no Natal.