Corpo do artigo
Há datas que se repetem, ano após ano, governo após governo, maioria após maioria. O Natal e a passagem de ano, os feriados religiosos e civis, os aniversários e as estações do ano. Um calendário em que sabemos o que vai acontecer daqui a um ano, daqui a dez, daqui a um século. A ampulheta que nos controla a vida e nos marca o ritmo a que vamos envelhecendo. Uma folha que nos guia, orienta, desgasta ou, pelo contrário, nos anima. Porque as datas são importantes, os símbolos fazem parte e o passar do tempo, impiedoso, mas sorrateiro, segundo a segundo, é a forma de medir a nossa finitude.
Depois, nesse calendário, há sempre, também, fenómenos que sabemos que vão, de certeza, acontecer. E, quanto mais ciência, quanto mais tecnologia, quanto mais conhecimento, mais perto estamos de antecipar o que vai, de certeza, suceder e, dessa forma, também, podermos antecipar medidas que possam, de algum modo, suster ou controlar males maiores.
Sempre me fez confusão que houvesse, instituída, uma «época de incêndios», apesar de os incêndios serem sempre na mesma época. E, todos os anos - nuns mais do que noutros, depende do tempo - já sabemos que vão arder centenas de milhares de hectares de floresta por todo o país. E, como sempre, ficamos surpreendidos e a reclamar por «prevenção», mas, como sempre, só temos tempo para correr atrás dos prejuízos. Todos os anos. Como o natal.
E há outro fenómeno, na estação contrária à dos incêndios, que ainda não tem instituído um nome, mas que poderia ser a época «das cheias». Sabemos, de antemão, que vai chover. Quando vai chover. Quando vai chover muito. Ou mesmo muito. E, mais uma vez, não vamos a tempo de antecipar o que já temos a certeza que vai acontecer. Sabemos onde estão os leitos de cheias, quais são as zonas de cidades, vilas e aldeias que vão ficar inundadas, as estradas que vão ficar intransitáveis e os túneis, estações e outros espaços que ficam debaixo do chão e, tal como «no ano passado» serão afetados.
E, mesmo assim, mesmo sabendo disto tudo, a semana passada voltamos a ver um país alagado, milhares de milhões de euros de prejuízos, casas inundadas, lojas desfeitas, bens de particulares que os seguros não vão assegurar a serem levados pela força da natureza como se fossem cascas de noz no oceano.
Mais do que prevenir, informar, tomar medidas de precaução e antecipar, voltamos a reagir, a abrir a boca de espanto, a lamentar, a recordar outras cheias, noutros anos, a comparar catástrofes, a lamentar a (má) sorte.
Durante décadas, municípios e governo foram displicentes, gananciosos e irresponsáveis. A construção civil tomou conta do país, o IMI que entra nas câmaras desculpa tudo e, tal como acontece noutras áreas da vida em sociedade, um pilha galinhas vai logo preso, um banqueiro corrupto morre antes de ver o processo chegar ao fim.
O fenómeno é o mesmo. Abrir uma janela em casa, aumentar uma varanda, fazer uma «marquise» - não que eu goste do género, mas compreendo quem gosta - obriga a uma carga de trabalhos, autorizações, vistorias, emolumentos, papéis, fiscalizações e, no fim do processo, a resposta pode ser: «Indeferido». Mas se o «projeto» incluir 400 apartamentos em cima de um rio, ribeiro ou leito de cheias, se as fundações de um prédio estiverem assentes em «pés de barro», se o «complexo» habitacional, turístico ou de negócios for uma aberração urbanística, ambiental ou, no limite, uma construção criminosa, autarcas e governantes não faltam à inauguração do novo espaço de «modernidade».
Há tanto por fazer neste país atrasado e pequenino que, há dias em que apetece recordar «O auto da pimenta», de Rui Veloso, e pedir ao capitão para dizer que não estamos.
Sei que tenho de partir logo que suba a maré
Mas até ela subir volto a encher o narguilé
Meu capitão já é hora de partir e levantar ferro
Não me quero ir embora diga que foi ao meu enterro