
Corpo do artigo
O Orçamento do Estado acaba de ser apresentado. Quando os partidos da Oposição ainda reagem ao mais relevante documento orientador da estratégia para o país, Marcelo Rebelo de Sousa é auscultado e, em direto para todas as televisões, comenta demoradamente as previsões e a "navegação à vista da costa" escolhida pelo Governo. No dia seguinte, novamente questionado pela Comunicação Social à margem de uma iniciativa de agenda em Lisboa, volta a pronunciar-se sobre uma longa lista de temas, incluindo o Orçamento e as "dúvidas" sobre a previsão para a inflação em 2023.
Quando hoje começar a receber os partidos políticos com assento parlamentar, nos habituais encontros que sucedem à apresentação da proposta de lei, não haverá quem desconheça as opiniões do comentador Marcelo sobre o documento. Não é nova a propensão do chefe de Estado para se pronunciar sobre todos os temas da atualidade, mas é cada vez mais ténue a linha de demarcação entre o comentário e a sua esfera de atuação enquanto chefe de Estado.
TSF\audio\2022\10\noticias\12\12_outubro_2022_a_opiniao_ines_cardoso
Já muito se escreveu sobre a informalidade de Marcelo Rebelo de Sousa, sobre o novo estilo que introduziu na interpretação do cargo e sobre a sua presidência de afetos, que granjeou níveis de popularidade únicos entre os atores políticos. As sondagens têm, no entanto, vindo a sinalizar uma queda lenta mas regular na avaliação do chefe de Estado (não por acaso coincidente com o período em que o Governo atinge os piores níveis de aceitação popular). E as críticas, antes surdas, sobem de tom e vão sendo exploradas por partidos da oposição, como se viu recentemente no 5 de Outubro ou na declaração infeliz sobre os abusos sexuais na Igreja.
Se em momentos de pandemia o país precisou da proximidade afetuosa de Marcelo, a crise que vivemos tem uma natureza totalmente diversa e mergulha-nos num clima de incerteza que só pode ser combatido com uma perceção de confiança e eficácia por parte das instituições. Essa solidez não tem sido demonstrada pelo Governo, minado por sucessivos casos, apesar do passo certeiro dado por António Costa com o acordo alcançado na concertação social. Aliás, o estado de desgaste que marcou os primeiros seis meses de governação levou mesmo a que se ouvissem analistas invocar o risco de dissolução do Parlamento - poder que o chefe de Estado fez questão de recordar no discurso comemorativo da instauração da República.
Numa crise que tem (também) contornos políticos, mais do que proximidade pede-se vigilância e um presidente com um distanciamento que torne mais eficaz cada palavra que pronuncie. Marcelo dá um sinal político relevante quando pede ao Parlamento a revisão da lei das incompatibilidades de titulares de cargos públicos. Mas acaba por desvalorizar esse mesmo sinal com a abundância de declarações, comentários e explicações na praça pública.
O país precisa de um equilíbrio de poderes que evite os mais do que assinalados riscos da maioria absoluta. Gerir a crise inflacionária implica em grande parte gerir expectativas e a confiança dos portugueses assenta na garantia de que a democracia funciona em pleno, com um Governo menos tomado por erros e uma Oposição mais exigente, ambos mediados por um árbitro isento, respeitado e com controlo sobre o jogo. Quanto menos forem comentadas, mais eficazes serão as suas decisões.
