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Primeiro foi Rui Rio a acusar Mário Centeno de ter feito um suposto erro de 590 milhões de euros na forma de apresentação do Orçamento do Estado.
Segundo o atual líder do PSD, na proposta de Orçamento do Estado entregue há semanas no Parlamento estavam dois quadros com valores diferentes para o saldo das administrações públicas, que totalizavam valores tão díspares que poderiam fazer com que se passasse do propagandeado excedente orçamental para um banal pequeno défice, coisa hoje em dia irrelevante no jogo da política portuguesa.
Na altura Mário Centeno respondeu, numa entrevista ao Expresso, que (e cito) "Rui Rio não sabe nada de economia - e muito menos de Finanças Públicas - ou nunca viu fazer um Orçamento do Estado" e acusou-o ainda de (volto a citar) "fraude democrática" por, alegadamente, não conseguir "entender as regras da contabilidade pública e da contabilidade nacional".
Agora é a Unidade Técnica da Apoio Orçamental da Assembleia da República que afirma, como a TSF noticia esta manhã, ter detetado dois erros com alguma gravidade neste Orçamento que, hoje, o próprio ministro das Finanças começa a defender numa comissão parlamentar.
Segundo a UTAO, por um lado, não se contaram as receitas em impostos e contribuições que o Estado arrecada por aumentar 0,3% os salários dos funcionários públicos e, por outro lado, não se contam devidamente as despesas com pessoal.
Não sei se Mário Centeno acha que a UTAO, com esta crítica, também participa na mesma hipotética "fraude democrática" com que apelidou a intervenção de Rui Rio, mas sei que, para quem está sempre a falar das "contas certas" do Estado como foco principal da sua política, estes pequenos incidentes causam alguma mossa - mesmo que, no final de tudo, para a vida real das pessoas, das instituições públicas e da economia, estas diferenças nada signifiquem.
A política de "contas certas" é a bandeira de Mário Centeno, é a base do seu poder. E essa ideia política, esse instrumento de propaganda, está hoje mais fragilizada.
A política de "contas certas" deu a Mário Centeno a porta de acesso à presidência do Eurogrupo, atribuiu-lhe a autoridade com que calou as reivindicações financeiras de outros ministros, justificou a mansidão com que o país aceitou as constantes cativações de imensas despesas aprovadas no Parlamento, e construíram o prestígio do ministro das Finanças que, tantas vezes no mandato anterior, pareceu mandar mais no governo do que o próprio primeiro-ministro António Costa.
Ao entrar (com estas notícias e na semana decisiva para a aprovação do Orçamento) numa discussão basicamente técnica sobre a forma como o documento foi construído, estaremos a descobrir, afinal, que há um Mário Centeno desleixado?
Não. O que estamos a confirmar é que o documento do Orçamento do Estado - cuja discussão é apresentada como o momento político mais relevante do ano - é utilizado pelo governo num jogo de ilusões políticas que ridiculariza o sistema político português.
Já o tínhamos percebido antes, durante vários anos, com a enorme dimensão das chamadas cativações que falsificam, ao longo do ano e na vida real, as intenções dos deputados que votam a favor do Orçamento, pois uma parte importante das despesas aprovadas acaba por não ser paga.
Para usar a mesma expressão de Mário Centeno, diria mesmo que a política de cativações, com a dimensão que tem, transforma a discussão do orçamento na Assembleia da República numa "fraude democrática".
Agora, com a discussão do Orçamento do Estado a arriscar focar-se em alegados erros e diferenças de critérios técnicos ou em alçapões com verbas escondidas, que podem levar ao pequeno excedente ou ao pequeno défice, à "fraude democrática" vai acrescentar-se aquilo a que me arrisco chamar de "irrelevância processual" pois no parlamento inicia-se um procedimento aparentemente inútil.
Se os deputados perderem muito tempo à volta dos supostos erros do Orçamento vai discutir-se muito menos aquilo que realmente importa para o país como, por exemplo, os aumentos salariais na Função Pública, a qualidade e quantidade de investimentos na Saúde e na Educação, o facto de passarmos a ter (por exigência de Donald Trump que quer 2% do valor dos orçamentos dos países europeus metidos na NATO) um aumento de 23,1% do orçamento afeto à Defesa quando, manifestamente, Portugal deveria ter, nesta altura, outras prioridades.
Já poucos discutem, sequer, se é bom para o país ter pequenos excedentes ou pequenos défices e se essa política financeira - que significa sacrifícios, cortes, limitações e degradação dos serviços públicos - tem algum resultado prático eficaz para o pagamento da colossal dívida pública ou se, a este ritmo, iremos acabar de pagá-la daqui a muitas dezenas de anos, o que significa que iremos estar todo esse tempo em semi-austeridade.
E já nem falo de a classe política portuguesa não poder aprovar um Orçamento que Bruxelas, a União Europeia, decida rejeitar.
Centeno até pode ter sido um pouco desleixado na elaboração deste orçamento - se calhar a pensar já que quer ter outra vida, que quer sair do Governo - mas isso não pode desviar os deputados do seu trabalho fundamental: tentarem construir o melhor Orçamento do Estado para a vida real do país que as circunstâncias políticas permitirem e, depois disso, votarem em consciência. Isso é muito mais importante.
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