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Numa semana, o apelo dos pais de uma bebé doente levou milhares de pessoas a doar mais de dois milhões de euros. É muito bonito e muito impressionante. E era importante saber mais: qual o valor médio das dádivas; qual a mais alta e a mais baixa. Se houve instituições a doar e qual o montante, e quanto veio só de indivíduos. Não é todos os dias que uma coisa destas sucede, e merece ser, além de celebrada, analisada e reflectida.
Mas há muitos mais motivos de análise e reflexão no caso de Matilde. Desde logo, o preço do medicamento que os pais esperam poder salvá-la: o mais caro do mundo. E porquê tão caro? Não tem decerto a ver com os custos da sua produção e desenvolvimento, que artigos de especialistas consideram ter no máximo implicado umas centenas de milhões.
O método de formação deste preço foi adiantado em Novembro pelo CEO da Novartis, a farmacêutica suíça responsável: é baseado no valor do tratamento corrente (ou seja, anterior a este novo medicamento) durante dez anos. O que, anunciou, andaria nos quatro a cinco milhões de dólares.
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Embora uma análise efectuada por um instituto americano tivesse determinado que a boa relação custo/benefício do medicamento se fixava, no máximo, em milhão e meio, as seguradoras americanas deram a entender estar confortáveis com um valor na casa dos dois milhões. E o preço acabou por ficar aí.
Com 9 mil crianças a nascer anualmente com a mesma afecção de Matilde, só na América o mercado potencial da droga, recomendada até aos 24 meses, atinge os 18 mil milhões de dólares - ou seja, quase o dobro do orçamento do Serviço Nacional de Saúde português em 2019.
É verdade que em Portugal, usando a estimativa base de um caso de atrofia muscular espinhal por cada 6000 a 10000 nascimentos, o número de bebés em cada ano necessitados do medicamento será de oito a 14. E que neste momento o país já compra um medicamento também caríssimo para combater a mesma doença, o Spinraza, que fica por 750 mil dólares no primeiro ano e 250 mil nos seguintes - para sempre. Mas a notícia surgida ontem, de que o SNS poderia vir a custear os dois milhões do tratamento de Matilde, pode não ser tão boa como parecerá à primeira vista (além de tornar a generosidade de quem doou tão frustrantemente redundante).
Num texto notável na Visão, o pai de um bebé que morreu de atrofia muscular espinhal elogia o SNS pelo tratamento que deu ao filho e por lhe ter disponibilizado o Spinraza poucos meses após ser aprovado pela Agência Europeia do Medicamento. Considera porém que, uma vez que o novo medicamento ainda não foi aprovado na Europa, o Estado português não pode comprá-lo. E que em qualquer caso deve poder negociar um preço melhor que o pedido pela Novartis.
Devíamos ouvir este pai. Ninguém pode acusá-lo de não saber do que fala ou de ter cifrões no lugar do coração. Mas é preciso certificar que em matérias fundamentais como esta o desejo de popularidade não atropela o bem comum.