"A Opinião" de Fernanda Câncio, na Manhã TSF.
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"Uma desculpa é pior do que uma mentira, porque uma desculpa é uma mentira cautelosa." A frase é de Karol Wojtyla, mais conhecido como papa João Paulo II. Foi no seu papado, que terminou em 2005, que surgiram os primeiros escândalos de abuso sexual de menores por membros da Igreja Católica. Estava então à frente da Congregação da Doutrina da Fé, que em 2001 assumiu a gestão do problema, o cardeal Ratzinger. Ratzinger foi papa, abdicou em 2013, e Francisco sucedeu-lhe.
Há praticamente 20 anos que estamos a ouvir pedidos de perdão, certificações de que agora é que vai ser, que medidas definitivas vão ser tomadas, que nunca mais haverá encobrimento, nunca mais haverá vítimas sem apoio nem justiça nem ninguém que lhes dê crédito. Lágrimas e suspiros.
Mas nada dá mostras de mudar realmente, apesar de o escândalo ter atingido o topo do Vaticano com a condenação do cardeal Pell , ontem confirmada.
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O caso de Pell é, aliás, caricatural. Número três do governo papal desde 2015, era conhecido pelas suas posições duras em relação a tudo o que dissesse respeito a sexo. Cantava loas ao celibato; associou os abusos sexuais de menores por padres à homossexualidade; disse que esta é "errada"; e chegou a afirmar, sobre o suicídio de jovens homossexuais católicos, que a culpa era de quem os recrutava para a subcultura gay.
Como arcebispo de Melbourne, entre 1996 e 2001, Pell criou um protocolo, primeiro do género no mundo, para lidar com casos de abuso sexual na arquidiocese. Mas é exatamente nessa época que o tribunal situa os crimes pelos quais foi condenado: penetrar um menor de 16 anos e mais quatro abusos sexuais de menores de 16.
Outra caricatura é o caso do número dois do Vaticano, o cardeal Ferrer. À frente da Congregação da Doutrina da Fé, o departamento que investiga abusos sexuais, o cardeal deveria ter comparecido perante um tribunal francês no mês passado, acusado de encobrir os abusos de um padre naquele país. Mas o Vaticano invocou imunidade diplomática.
Como acreditar nas certificações do papa de que não vai haver mais encobrimento e de que todas as denúncias vão ser comunicadas às autoridades competentes, se o seu número dois, que é suposto investigar e instruir os processos de abuso sexual no seio da igreja, recusa a justiça dos homens?
Num Estado de Direito, qualquer empresa ou organização na qual se descubra um padrão endémico de crime como o que está patente na Igreja Católica é alvo de investigação judicial. E a organização, se realmente interessada na verdade e na justiça, pede-a. Mas se não surpreende que a Igreja Católica continue a encenar atos de contrição e proclamações definitivas enquanto invoca imunidade diplomática, qual a desculpa de governos e ministérios públicos para assobiar para o lado?
*a autora não escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990