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"Elimina o impossível e o que restar, por muito que improvável que te pareça, será a solução", Sherlock Holmes para Watson, na ficção de Sir Arthur Conan Doyle
O grande problema com Donald Trump foi tantos terem querido acreditar, durante tanto tempo, que "talvez as coisas não sejam tão más como pareçam". Foram milhões de eleitores a achar isso na América. Foram centenas de representantes na câmara baixa e várias dezenas de senadores no Capitólio. Foram inúmeros líderes mundiais. Sim, é humano: tentamos sempre acomodar num quadro de relativa normalidade mesmo aquilo que nos parece totalmente inaceitável.
A 20 de janeiro de 2017, o impensável chegou ao poder - e passou a ter direito a "normalizar-se". Mas o risco de colocarmos o "mundo ao contrário" é demasiado grande para não esbarrarmos na evidência.
A América está, há 1000 dias seguidos, a perder reputação e a desfazer décadas de prestígio e posicionamento em questões cruciais. Com Obama, os EUA lideraram a luta contra as alterações climáticas. Com Trump tornaram-se numa espécie de pária com direito a risinhos mal disfarçados sobre o negacionismo ridículo que a atual administração em Washington promove sobre aquele que será, talvez, o tema central das próximas décadas na agenda política e mediática.
Não pode ser aceitável que encaremos com normalidade que o cargo político eleito mais prestigiado do mundo esteja a ser ocupado por alguém que mente descaradamente, que destrata aliados permanentes dos Estados Unidos, que transmite um comportamento agressivo, destrutivo e irresponsável.
Era suposto que os líderes nos apontassem o caminho e nos dessem o exemplo. Que referência terão as crianças de hoje ao olhar para o topo da pirâmide política e social e verem alguém que despeja tudo o que os pais dizem aos filhos para não fazer? Estaremos a viver, na era Trump, o fim de um tempo que pensávamos que seria duradouro, em que quem atingia as funções mais elevadas só lá chegava por reunir um conjunto de qualidades positivas, que não geravam grande discussão? Ou estamos, apenas, no tal "intervalo" em forma de "vírgula" que Barack Obama antecipou, horas depois de ser forçado a passar o testemunho ao mais inesperado e indesejado sucessor?
Mil dias depois da tomada de posse do 45.º Presidente dos EUA, só não vê quem não quiser: na Casa Branca está alguém indigno para o cargo que representa - uma ameaça séria, real e constante para a funcionalidade de um sistema de "pesos e contrapesos" que, durante quase dois séculos e meio, se baseou numa permanente tensão entre rivalidades bipartidárias e consensos não escritos.
O "fardo glorioso" ("glorious burden") do selo presidencial está, neste momento, entregue a um "bully" autocentrado que desrespeita os limites dos seus poderes, ataca a independência do poder judicial, faz chantagem com os membros dos dois partidos no Congresso e vandaliza o legado de antecessores como Washington, Jefferson, Lincoln, Kennedy, Eisenhower ou Reagan. A presidência Trump está a ser ainda pior do que a campanha Trump antecipava.
Nem a memória curta o ilibará
Foram mil dias de indignação e nem mesmo a memória curta destes dias, cada vez mais de espuma e menos de substância, nos faz distrair do essencial.
"Travel ban" a lançar o caos nos aeroportos durante semanas; saída americana do Acordo de Paris; demissões em barda na Administração (sobretudo de quem é especialmente próximo do Presidente); vassalagem a Putin em Helsínquia; diabolização do Irão e denúncia de acordo nuclear multilateral de que era peça construtiva; enfraquecimento da posição da América no Médio Oriente; cumplicidade com a Arábia Saudita; passagem da embaixada americana em Israel para Jerusalém e reconhecimento da cidade santa como capital israelita (totalmente à margem da comunidade internacional e comprometendo a "two states solution"); guerra comercial com a China baseada em política de tarifas de forma intermitente e errática, a lançar total imprevisibilidade nos mercados, criando com isso risco de recessão; "bullying" aos aliados da NATO, em total desrespeito pela tradição transatlântica; ingratidão com os aliados curdos, chave na equação para derrotar o Daesh, ignorando todos os avisos de conselheiros militares de que ainda é cedo para completar a retirada militar da Síria; ameaça aos supostos amigos europeus de nada fazer para travar o regresso dos combatentes do Daesh, na sequência do avanço turco contra os curdos; incentivo a um Brexit selvagem que colocaria o Reino Unido num caos político, económico e social e agravaria a fragilidade do projeto europeu, por mero egoísmo nacionalista de poder colher para os EUA uma parte do prejuízo da EU; chantagem sobre funcionários e US Officials que foram chamados a depor no Relatório Mueller e poderão ser intimados no "impeachment", em total desrespeito pelas regras de fiscalização e controlo dos diferentes poderes.
Ainda poderia desfiar um rol com o dobro das perplexidades expostas nas linhas anteriores - mas a ideia que fica é que, com Trump, nada disto chega para que milhões de pessoas na América e no resto do mundo continuem a achar que "ok, ele tem muitos defeitos e devia agir de outra forma, mas os outros políticos também erram e ele há de conseguir alguma coisa positiva".
Como é que se lida com isto? Será que os "bullies" que projetam os piores instintos beneficiam de uma espécie de "síndrome de Estocolmo" coletivo? Será essa uma forma de proteção que muita gente encontra para acomodar a maldade que sempre existirá no mundo? Será que os valores de tolerância, respeito pela diferença, tentativa de perceber "o outro lado" 4 necessidade de buscar consensos são mesmo totalmente abdicáveis por uma fatia muito considerável da população, a troco de uma suposta "vantagem meramente comercial", que nem sequer está a confirmar-se?
Crise constitucional
Trump não caiu do nada: representa o lado mais básico do sentimento "nativista" de suposta (e obviamente errada) "pertença" por parte da maioria branca que, sobretudo no Midwest, sente os seus privilégios em risco. Juntou a isso um amor (tardio, para quem estudou o seu percurso de vida) pelos valores religiosos e princípios ultraconservadores e pela posição "pró direito às armas", que reflete a visão de grande parte da direita americana.
Antes das eleições intercalares de novembro de 2018, que viria a dar aos democratas a maior vitória na Câmara dos Representantes em quatro décadas, Trump agitou o medo da "invasão" de imigrantes da América Central, vindos de "shithole countries" (a expressão é do atual Presidente dos EUA), que estariam a chegar numa "caravana". Onde é que anda essa tão perigosa "caravana"?
Será que os tempos que vivemos são mesmo para quem sabe aproveitar a completa falta de memória de quem tem o poder do voto?
Se um Presidente dos EUA que coloca os seus interesses eleitorais egoístas acima do interesse nacional conseguir passar incólume, há uma séria crise constitucional em curso que, como bem refere Nancy Pelosi, abala a capacidade de "preservação da República". O que é mais perturbador é que muitos americanos respondem nas sondagens que acham que "Trump abusou do seu poder e comportou-se acima da Lei", mas não consideram que isso deve ser motivo para ser destituído.
Será que ainda vamos a tempo de evitar a condenação de vivermos num mundo ao contrário?
*Autor de "Isto Não é Bem um Presidente dos EUA - Diário dos Anos da Perturbação Americana"