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Ocorreu ontem a audição parlamentar do ministro Pedro Nuno Santos em que um dos tópicos principais foi a eventual violação da lei das incompatibilidade e impedimentos devido ao contrato celebrado com o Estado por uma empresa de que o Ministro detém, em conjunto com o pai, mais que o limite legal dos 10% (mas dos quais apenas 0,5 % são do Ministro).
Hesitei bastante em regressar a este tema. Por um lado, receio alimentar e explorar casos em que não me parece que os políticos envolvidos tenham pretendido retirar qualquer benefício pessoal (e em que a demissão seria, provavelmente, uma sanção excessiva). Por outro lado, a forma como o tema foi defendido pelo governo e tem sido discutido leva-me a temer que, como infelizmente é comum entre nós, se tirem as conclusões erradas deste debate e se acabe por passar do excesso ao deserto na prevenção dos conflitos de interesse...
Mais que os casos subjacentes, é a forma que o governo escolheu para se defender desses casos, desvalorizando e manipulando a lei, à medida do que lhe é mais conveniente, que é realmente perigosa para a política.
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O governo tem invocado em sua defesa um parecer do Conselho Consultivo que interpreta a lei anterior de incompatibilidades e impedimentos. O parecer diz respeito à situação de uma empresa detida, no todo ou em parte, por um familiar do titular do cargo político, mas na qual esse político não tem qualquer participação. O parecer defendia que, nesses casos, a lei devia ser interpretada de forma a não abranger as contratações com o Estado em áreas fora da competência do titular do cargo político. O governo entende que, apesar da lei ter mudado, este parecer também excluiria o impedimento no caso relativo ao Ministro Pedro Nuno santos. Não é assim. É verdade que o facto do parecer ser anterior à lei atualmente em vigor não é por si impeditivo do parecer poder ser aplicado a situação do Ministro Pedro Nuno Santos. Mas para isso era necessário que a situação analisada no parecer fosse idêntica a esta. Acontece que não é.
O parecer distingue os casos que envolvam apenas os titulares dos cargos políticos dos casos que envolvam apenas os seus familiares. Não diz nada sobre um caso como estes em que os 10% são detidos pelo Ministro conjuntamente com um familiar.
Já a lei é clara em tratar da mesma forma os casos em que o titular de cargo político detém mais de 10% sozinho ou conjuntamente com o familiar. Pode-se discordar desta equivalência, mas ela está na lei.
O primeiro-ministro tem razão quando diz que a lei é clara, só que no sentido contrário ao que defende. E este é o primeiro golpe para a política. O primeiro-ministro não pode dizer aos portugueses que um parecer da PGR e a lei dizem o contrário do que lá está. O governo pode legitimamente defender que a lei é inconstitucional, mas, como aliás recorda este parecer da PGR, a convicção dessa inconstitucionalidade não justifica nem permite uma interpretação contrária à lei. O que teria a fazer, nesse caso, seria pedir a fiscalização da constitucionalidade da lei. Não o fazer só poder querer esconder a hipocrisia: de que outra forma podemos descrever, aprovar-se uma lei muito exigente para os políticos e depois aplicá-la retirando-lhe essa exigência.
Acresce que, sendo controverso não é certo, que a equivalência entre a situação em que o político detém mais de 10%, sozinho ou conjuntamente, seja inconstitucional. Devemos ter em conta as razões que justificam os impedimentos. Pretende-se, desde logo, limitar o risco, ou a simples perceção pública do mesmo, de que o titular do cargo político desvie o exercício do poder em proveito de si próprio ou familiar. Mas, como bem recorda um parecer mais recente da PGR, visa-se também "prevenir decisões influenciadas pelo temor referencial". Por outras palavras, que mesmo não existindo interferência política, quem decida possa ser de alguma forma influenciado pela relação da empresa com esse titular do cargo político. É esta, provavelmente, a razão pela qual a lei decidiu estender este impedimento aos casos em que os contratos não são celebrados por entidade debaixo da tutela do titular do cargo político. Também nesses casos esse temor reverencial pode existir. Esse receio é valido quer o político tenha uma participação na empresa sozinho ou, conjuntamente, com familiar. É verdade que pode parecer ridículo no caso de uma participação insignificante ou simbólica. Mas este é um argumento reversível: se é uma participação insignificante qual a sua razão de ser? É legítimo que a opinião pública se questione se tal circunstância se deve, afinal, ao valor que a associação com o titular do cargo político tem para a empresa... É excessiva esta preocupação? Talvez. Há países que apenas aplicam tais impedimentos a áreas ou circunstâncias em que o titular do cargo político pode, de alguma forma, exercer poder diretamente. Mas esses tendem a ser países em que a Administração Pública é muito mais independente. Muitos países começam aliás por aí: a inexistência de impedimento é relacionada com uma garantia de que o processo de contratação é totalmente independente e isento. Ora, este é o cerne da questão entre nós. Acho bem que não se coloquem impedimentos excessivos a políticos e seus familiares, mas para isso devíamos começar por garantir uma administração pública despartidarizada, isenta e imparcial. Sem o tal temor reverencial partidário....