"A Opinião" de Fernanda Câncio, na Manhã TSF.
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Quando soube que havia um incêndio na Notre-Dame, confesso, não dei importância. Achei que seria de imediato debelado e continuei o que estava a fazer, sem sequer ligar a TV. Foi preciso uma amiga, à beira das lágrimas, avisar-me. Para perceber que não, não era uma coisa sem importância, o fogo não tinha sido logo extinto.
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Não cheguei a ligar a TV. Foi no Twitter que vi cair a flecha da catedral. E as pessoas paradas ao longo do Sena, em silêncio, a olhar. A velar. Não sei dizer o que me comoveu tanto.
A ideia da memória a arder, do irremediável, dos séculos de vidas e de história em cinzas - em risco de ser cinza.
A ideia de que um monumento que tinha sobrevivido a tanto - a revolução francesa, duas guerras mundiais, a ocupação nazi - e acumulado tantas camadas, num palimpsesto arquitectónico, podia arder assim, por acidente, uma estultícia qualquer, um acaso. A ideia da fragilidade essencial de tudo.
Mas havia mais nessa dor que a mim como a tantos surpreendeu na intensidade. Havia uma noção de simbolismo. Bernard-Henri Lévy falou de "um tesouro da civilização", da Europa "atingida no coração"; a comunidade judaica da "alma de França". E de "estarmos todos em choque, crentes e não crentes."
Crentes e não crentes, precisamente: não é decerto preciso crer numa divindade, professar qualquer culto para amar templos - os templos são do humano, da arte, da beleza, da vontade de transcendência, da deliberação de tocar o céu, das perguntas sem resposta. São uma narrativa que nos fala, que fala por nós. Não pertencem a nenhuma religião, a nenhuma seita, são de toda a gente. Como eram de todos os budas que os talibãs explodiram no Afeganistão, ou Palmyra, na Síria, que o Daesh quis destruir. É isso que património da humanidade quer dizer: de todos. Por isso sagrado.
É sobre esse sagrado que a poeta Matilde Campilho fala no mais belo texto que até agora li sobre o fogo de Notre-Dame: "Fagulhas de mil anos sobrevoaram Paris e a Europa, e a esta hora vão a caminho de África e da América. (...) É claro que nos acerta no peito o desfazer de catedrais, venham elas em forma gótica ou contemporânea. (...) Nada é definitivo, tudo é permanente." E cita Walter Benjamin: "Não passa por nós um sopro daquele ar que envolveu os que vieram antes de nós?"
Não sei se foi essa noção que nos comoveu tanto, a tantos. Ou a espécie de osmose global de emoção que hoje, graças aos media e às redes sociais, tantas vezes nos domina numa dramatização postiça, sem alma. Notre-Drame, dizia ontem a magnífica capa do Libération.
Talvez, sem ironia, ou por ironia - porque tanto há, dos moçambicanos nas cheias aos refugiados cujos bebés afogados já não fazem primeiras páginas - precisemos, de vez em quando, de chorar por coisas maiores que nós, de sentir coisas muito maiores que nós.
Ou talvez neste tempo em que os melhores valores europeus estão sob cerco, em que os velhos demónios do racismo, do fascismo, do nacionalismo e do ódio avançam e nos ameaçam a ponto de já não sabermos bem o que resta da Europa e das suas luzes, a queda daquela torre em chamas, o fogo naquele lugar sagrado simbolizem o nosso desalento, o nosso horror. Sei que foi isso que senti: um sinal, um presságio. E um apelo: não deixemos arder.
*a autora não escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990