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Mais de uma centena de presidentes e vereadores de câmaras municipais, prováveis candidatos às próximas autárquicas, estão, neste momento, sujeitos a investigações criminais. Ser objeto de uma investigação não faz de ninguém culpado. Mas não deixa de perturbar o ato eleitoral e poder colocar em causa a confiança no sistema político.
A lei não proíbe, nem pode constitucionalmente proibir, que pessoas investigadas, ou mesmo acusadas, sejam candidatas. Mas isso é questão diferente de saber até que ponto os partidos políticos devem atender a essa circunstância entre os diferentes critérios que usam para escolher os candidatos que vão submeter aos eleitores.
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O simples facto de alguém estar a ser investigado não deve impedir a sua candidatura. A investigação deve ocorrer sempre que exista uma denúncia, mas pode nem sequer revelar a existência de qualquer indício sério de um crime. Impedir alguém de ser candidato nestas circunstâncias permitiria até que se fizessem denúncias falsas com esse mero propósito. O mesmo se diga quanto à constituição como arguido. É um estatuto imposto para proteção do próprio e que até pode ser atribuído sem existirem quaisquer fundadas suspeitas por parte do Ministério Público.
Por outro lado, há circunstâncias em que me parece que os partidos não apenas podem, mas deveriam, excluir candidatos sobre investigação ou acusação criminal, ainda que não condenados. Essa investigação pode já ter tornado públicos factos sobre os quais podemos e devemos fazer um juízo ético independente do juízo de legalidade. Com o pretexto de deixar à justiça o que é da justiça e à política o que é da política, o país abstém-se, com frequência, de debater a dimensão ética de certos comportamentos. Separar a justiça da política exige certamente não interferir em processos judiciais. Mas separar a justiça da política exige, também, não "atirar" para a justiça o juízo ético e político necessário sobre factos já conhecidos. Esta seria, aliás, uma forma particularmente perversa de judicialização da política: impedir uma avaliação ética e política de certos factos, argumentando que eles se encontram sobre avaliação judicial.
A segunda instância em que os partidos deveriam atender a esses processos criminais é quando já exista uma acusação do Ministério Público (por crimes de uma certa tipologia, incluindo os praticados ou relacionados com o exercício de cargos públicos e políticos) e a pessoa em causa esteja sujeita a medidas de coação de uma certa gravidade. A existência de uma acusação pelo Ministério Público e de uma decisão judicial que impõe certas medidas de coação é diferente da mera constituição como arguido. Significa que há um juízo preliminar de suspeitas sérias, validadas por magistrados. Este juízo não coloca em causa a presunção de inocência dessas pessoas, mas é suscetível de colocar em causa as condições objetivas de confiança e autoridade necessárias ao exercício de um cargo político. Não se trata, portanto, de inverter a presunção de inocência. Esta deve ser respeitada e não podemos esquecer os exemplos de acusações que se revelaram totalmente infundadas. Mas também não podemos ignorar o impacto que decisões, ainda que preliminares, da magistratura podem ter no exercício de funções políticas.
É necessário encontrar um equilíbrio entre os diferentes valores em causa. Não se trata de fazer qualquer juízo sobre a culpabilidade desses candidatos, mas, tal como já ocorre no acesso a certas funções e profissões, de definir uma condição objetiva que impede o exercício de funções políticas, debaixo de certas suspeitas validadas por autoridades judiciais, devido à necessidade de preservar a confiança dos cidadãos que é fundamental ao normal exercício dessas funções.