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O súbito consenso político sobre a necessidade de punir o enriquecimento injustificado tem tanto de positivo como de preocupante. Não há dúvida que este pode ser um passo importante no combate à corrupção, sobretudo atendendo a quão ineficaz se tem revelado o nosso sistema judicial na punição de casos de corrupção. O enriquecimento injustificado permite dispensar alguma da investigação mais complexa de fluxos financeiros que o crime de corrupção, frequentemente, exige. Basta encontrar o enriquecimento, não sendo necessário ir descobrir a sua origem. Também dispensa a prova da contrapartida oferecida pelo corrompido. Tal prova, como ficou patente na Operação Marquês, é mais difícil e subjetiva, em particular quando estão em causa atos políticos em que a influência é, por vezes, difusa e indireta.
O enriquecimento injustificado pode, assim, facilitar o combate à corrupção e agilizar os processos judiciais. É verdade que o tribunal constitucional colocou alguns limites à forma de punir este crime, mas, como o próprio Presidente da República já referiu, tais limites não são absolutos.
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Há um risco, no entanto. O de, uma vez mais, se presumir que se encontrou uma solução fácil para um problema complexo e de se usar esse pretexto para não fazer todo o resto que é fundamental para combater a corrupção.
Não é a primeira vez que se introduz um novo tipo de crime perante a incapacidade de punir e combater a corrupção (pensem no caso do recebimento indevido de vantagem), sem muito ter mudado. E o enriquecimento injustificado está longe de ser uma bala mágica no combate à corrupção.
Primeiro, o próprio enriquecimento pode ser escondido e se, e quando, o enriquecimento injustificado vier a ser punido, será expectável que parte importante do esforço de corruptores e corrompidos seja investido na ocultação desse enriquecimento. O facto do trabalho da polícia e Ministério Público ser um pouco mais fácil, não significa que deixe de ser difícil. Basta notar que tal enriquecimento não seria detetado facilmente no caso da Operação Marquês em que boa parte do dinheiro circulou, durante muito tempo, sem qualquer rasto documental, sendo entregue em numerário.
É assim fundamental que se intervenha, igualmente, no sentido de mudar a cultura jurídica, dominantemente formalista, de interpretação e aplicação do Direito e de estratégia e gestão dos processos, que abordei num comentário anterior. Felizmente, também aqui parece existir um consenso crescente, neste caso em boa parte da nossa magistratura. São cada vez mais as vozes que defendem desde a oralização do processo, e subsequente agilização, à eliminação da instrução ou o reforço da especialização. Compete à política corresponder a esta abertura da magistratura, dando-lhe os meios necessários (nomeadamente a nível digital) e resistindo às pressões contrárias que se irão manifestar, invocando, de forma artificial, o conceito de Estado de Direito para continuar, na prática, a afastar o Direito da Justiça.
Em segundo lugar, o combate à corrupção em sentido lato, como também tenho repetido insistentemente, só se faz combatendo todo um conjunto de práticas da nossa cultura política que promovem ou protegem a captura do poder político por interesses particulares. Se a penalização do enriquecimento injustificado for o sinal de que, finalmente, se percebeu a necessidade de mudar essa cultura política então é realmente motivo para celebrarmos. Se for um pretexto para evitar essa mudança, então é, antes, apenas mais um engano.
Ontem, o Presidente da República fez um dos melhores discursos políticos da nossa história democrática. O apelo que fez a uma reflexão simultaneamente equilibrada e realista da nossa história recente aplica-se bem ao que temos de fazer sobre a relação entre a nossa cultura política e corrupção. Seria a melhor forma de virmos a comemorar os 50 anos do 25 de Abril.