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Nos dias anteriores à queda do Muro de Berlim, do lado Oriental, o povo da RDA começou a sair à rua. Primeiro, umas poucas centenas de pessoas, com medo. Depois, alguns milhares que, timidamente, arriscaram a vida para estar na rua. Em poucos dias, as centenas eram milhares e os milhares eram, já, milhões. O noticiário do canal público da RDA não transmitia os protestos e as manifestações, silenciosas, mas elas estavam a existir. E acabaram por se revelar decisivas. Mais tarde, já derrubado o muro, um dos manifestantes diria que, sim, tinha sido um risco, mas quando «as massas» - na linguagem marxista - são em tão grande número, não é possível «matá-los a todos». Foi, também, assim, além das ordens pouco claras e da cumplicidade dos agentes da fronteira, que a Alemanha acabaria por se reunificar. E que o mundo sofreria uma das maiores transformações do século XX.
Em 1993, em Portugal uma «geração rasca» lutava contra o aumento das propinas. Entre outros protestos e manifestações mais ou menos ortodoxas, quatro estudantes do ensino superior, diante da então ministra da educação, Manuela Ferreira Leite, baixaram as calças e mostraram oito nádegas. Naqueles quatro rabos estava escrita uma mensagem simples: «Não Pago». Nada lhes aconteceu de especial, a mensagem passou, fosse pela originalidade do protesto, pelo choque com que a sociedade recebeu a forma escolhida para expressar uma vontade, fosse pela razão que, então, assistia aos estudantes. A revolta estudantil já tinha história na estória do princípio da queda do Estado Novo. Muitos milhares - incluindo o primeiro-ministro de 1993, Cavaco Silva - participaram nas manifestações e plenários de então. Mais uma vez, mesmo com a PIDE, o regime não podia prender todos os milhares e milhares de estudantes que desafiavam o poder. Deteve alguns, julgou outros. Mas «as massas» transformaram o impossível em possível.
Por estes dias, em 2022, pelo menos no Reino Unido e em Itália, há já pequenos movimentos de cidadãos, apartidários e sem agenda política, que desafiam, livremente, outros cidadãos a não pagar as contas de energia e gás. Não se trata sequer de uma tomada de posição por discordância com os diferentes governos. Trata-se, apenas e só, de deixar de pagar uma fatura que se tornou incomportável, exorbitante, imoral, injusta e que, no limite, leva a que se tenham de fazer opções: ou se pagam as contas da luz e do gás, ou se cumpre com os empréstimos ou o arrendamento da casa, ou se come.
A inflação, a economia de guerra, os aumentos dos bens alimentares para números estratosféricos, a subida das prestações do crédito à habitação, os preços das rendas, da gasolina, da energia, do gás... a manutenção dos salários de todos quantos não trabalham na função pública, o desequilíbrio familiar entre as receitas, que são as mesmas ou menores e as despesas, que sobrem sem parar e que, dizem os manuais de economia, nunca mais voltarão a encolher cria o caldo perfeito para que «as massas» comecem a reagir. Primeiro, como em Berlim, serão umas centenas. Depois, uns milhares. Por mim, espero que sejam milhões a dizer que não pagam. Que não é possível trabalhar seis meses em cada 12 para o Estado. Que já basta de impostos altos e serviços apenas medíocres. Que o estado tem de ser, não o subsidiador, atirando dinheiro para cima dos problemas, mas um regulador a sério e que, como lhe compete, fixe preços máximos para determinados bens e serviços essenciais.
Que farão a EDP, a GALP e outras «operadoras» do mercado da eletricidade e do gás se um país inteiro deixar de pagar? E que respostas terá o estado e o governo se um país inteiro deixar de pagar? Corta a energia? Processa um povo inteiro? Leva a tribunal milhões de cidadãos que, pura e simplesmente, têm de fazer opções para sobreviver?
A história diz-nos que não é possível «prendê-los a todos». Também não é possível «processá-los» a todos. Nem julgá-los a todos. Bem sabemos, diz o povo, que mais depressa vai preso um pilha galinhas do que um criminoso que usa colarinho branco. Mas, se formos todos, mesmo todos, o que é que «eles» nos podem fazer?
