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O nosso medo mais arrebatador e primário é o da morte. Para o superar, construímos arquiteturas de proteção física, segregamos a diferença, etiquetamos pessoas e deixamos legados culturais e genéticos que sobrevivam ao nosso óbito. São os caminhos para domesticar os nossos temores e permitir que, na medida do possível, consigamos encontrar ordem no meio dos instintos. A nossa aparente consciência de controle é, contudo, afetada quando somos alertados para a imprevisibilidade da morte. O ébola estava confinado a algumas regiões de África. Longe. O Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH) que causa a SIDA tem mecanismos de transmissão perfeitamente conhecidos. Domínio. A varicela matou milhões durante 3.500 anos, mas foi erradicada na década de 1980. Vacina. Mas o COVID-19 suscita um tremor animalesco principalmente porque é imprevisível e global. A taxa de mortalidade é muito baixa, mas nós seres humanos não sabemos conviver com a falta de controle. A nossa insegurança faz com que sejamos mais sensíveis ao alarmismo do que à matemática.
A efemeridade que atualmente sentimos leva-nos ao despropósito e à overdose. A vida passa a ser guiada, em iguais doses, pelo útero e pelo túmulo. Tudo passa a poder justificar-se. Mas e se, no meio desta perturbação, começássemos, tateantes, a ver mudanças - algumas delas até quiçá positivas? E se o COVID-19 pudesse servir para acelerar o passo da História permitindo que a humanidade seja exposta a determinadas circunstâncias mais cedo do que o previsto?
A Peste Negra matou 200 milhões no século XIV. Mas trouxe-nos o Humanismo, o Renascimento, os hospitais, a imprensa de Gutenberg e a classe média pós-feudal. Se Singapura, um passadiço de pessoas entre a Ásia e a Europa, não tem nenhuma morte atribuída ao COVID-19 isso deve-se também à transformação do sistema nacional de saúde que empreendeu após a epidemia da SARS de 2003.
O mundo pós COVID-19 será, concomitantemente, marcado pelo maior distanciamento e pela maior proximidade. Distanciar-nos-emos fisicamente dos nossos colegas profissionais. Finalmente o teletrabalho, o trabalho remoto, o home office - ou o que lhe quisermos chamar - fará parte integral dos profissionais de serviços. Há mais de uma década que os funcionários mais jovens incentivam os empregadores a conceder-lhes maior flexibilidade. Chegou o momento do pós-escritório. Organizaremos a nossa vida pessoal e profissional de forma menos dicotómica e sequencial. A tecnologia para esse efeito já está disponível e sabemos que a produtividade não é comprometida. As empresas passarão por uma profunda transformação cultural e logística para se adaptarem a este novo mundo. Depois da crise do COVID-19 milhões de trabalhadores voltarão aos seus escritórios após experimentarem, pela primeira vez, as vantagens de trabalharem em casa. Serão eles os agentes da mudança.
É possível também que as escolas tenham, cada vez mais, aulas online e que, as famílias, usufruam de várias soluções tecnológicas para poderem viajar sem sair de casa - de realidade virtual à realidade aumentada. Começaremos a viver com mais proximidade física. De forma qualidade medieval, redefiniremos o conceito de "perto" e de "longe" para nos aproximarmos das comunidades onde vivemos. Ressurgirá o conceito de vizinhança. O municipalismo ganhará novo fôlego.
Apanhar um avião será socialmente criticável. A urgência de voar menos emergirá devido à necessidade de reduzir emissões de carbono. A tecnologia de teletransporte permitirá que profissionais tenham reuniões virtuais com todas as condições sensoriais. A tecnologia de tradução simultânea permitirá que convivamos, à distância mas com grande proximidade, com qualquer pessoa em qualquer ponto do planeta.
Certamente o COVID-19 impactará o resultado das eleições em vários países, marcadas para 2020, como as legislativas da Coreia do Sul (15 de abril), na Nova Zelândia (19 setembro) ou as presidências nos EUA (3 novembro). A capacidade dos atuais líderes em enfrentar o vírus será avaliada nas urnas. Mas os efeitos políticos do COVID-19 a longo prazo serão mais significativos. Se se confirmar que estados mais centralizadores, hierárquicos ou autoritários tiveram melhores desempenhos durante a crise, sistemas centrais de comando ganharão um novo vigor. Mais de 30 anos depois da queda do Muro de Berlim, as decisões voltarão a ser unidirecionais e de cima para baixo. E como, no futuro, as epidemias causadas por vírus continuarão a ser uma caraterística do ritmo da vida humana, estaremos constantemente a ser lembrados das aparentes eficiências da centralização.
Daqui nascerá um conflito entre a localização das relações pessoais e a centralização do poder político. Viveremos em pequenas comunidades geográficas e de interesses, mas uma força termodinâmica irá tentar sorver as nossas capacidades de tomar decisões políticas locais. As propensões da comunidade nacional e da comunidade local nem sempre estarão em harmonia. Haverá tensão entre o Estado e o município.
Para agudizar a crise, o poder central desfrutará, cada vez mais, de mecanismos de controle individual, facilitados pelo uso de Big Data, inteligência artificial e computação em nuvem. O modelo chinês popularizar-se-á. Cada cidadão abdicará da sua privacidade para que o estado possa prevenir e monitorar surtos epidémicos, tratar pacientes e alocar recursos de forma eficiente.
O uso posterior destes dados, em outras dimensões, poderá ser motivo de desordem. Sabe-se hoje que a Gripe Espanhola viralizou rapidamente porque, no seio da Primeira Guerra Mundial, a Inglaterra, França e Alemanha selaram o surto como um segredo de Estado. Proporcionar a um governo nacional acesso a informação exclusiva sobre os seus cidadãos pode ser uma extraordinária ferramenta de bem-estar social ou um potente instrumento de controle. Há mais de 2.500 anos, Confúcio advertiu que um governante levaria um país à ruína se ninguém resistisse a políticas equivocadas. Mas só depois de enfrentarmos e sobreviermos ao COVID-19 é que saberemos o que é equivocado ou não.
*Rodrigo Tavares é fundador e presidente do Granito Group e professor na Nova SBE. A sua trajetória académica inclui as universidades de Harvard, Columbia, Gotemburgo e Califórnia-Berkeley. Foi nomeado Young Global Leader pelo Fórum Económico Mundial.