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Os comentadores são uma nova espécie que atua no espaço público, segundo António Costa. Nos últimos anos, amiúde, o primeiro-ministro referiu-se, quase sempre sem grande entusiasmo e empatia, aos "comentadores". Segundo Costa, consta que os comentadores, por regra, não estão alinhados com o governo. E esses mesmos comentadores, pasme-se, comentam, analisam e dão opinião sobre os factos, dos mais diversos, que alimentam o dia a dia da rés-pública. Convém, antes de mais, lembrar que "os comentadores" não criam factos. O grande criador de factos dos últimos 50 anos está ocupado e, quando comenta, não deveria fazê-lo. O outro aprendiz de criador de factos comenta, na verdade, mas só matérias de interesse internacional, pelo que, nesta fase, também não (re)cria factos. Sobram, portanto, os "comentadores" que olham para os factos e fazem uma leitura. Costa pode queixar-se muito dos comentadores, mas não pode responsabilizá-los pelo que acontece. Apenas pela interpretação, contextualização e análise.
Este fim de semana, de t-shirt e camisa por fora das calças, o primeiro-ministro informal voltou a referir-se aos comentadores. Não percebe, António Costa, que a demissão de um secretário de estado, constituído arguido na mesma manhã em que pediu a exoneração, por estar indiciado num processo de corrupção, mereça comentário. E mais. O chefe do governo assegura que não são estes temas - os que os comentadores comentam - que interessam aos portugueses. Como anda "muito na rua" Costa sabe exatamente as matérias que interessam aos cidadãos. E, entre essas, não está, certamente, mais um - o décimo terceiro - governante que sai de um governo que só tem 15 meses. Costa não vê interesse nenhum no tema.
Tem, até, uma certa razão. Há uma diferença entre a realidade a perceção. Os portugueses com quem Costa se cruza na rua estão, como disse o primeiro-ministro, preocupados com a inflação, a taxa de juro do crédito à habitação, o preço da gasolina e do cabaz alimentar. No dia a dia dos cidadãos, os processos judiciais a secretários de estado demissionários não são a prioridade para quem tem de pagar a casa e por comida na mesa. Mas, depois da realidade, vem a perceção. Que, como sabemos, transforma muitas vezes a realidade numa outra realidade. E, aí, na perceção, António Costa já não tem razão. Olhar para o governo e ver que se trata de um queijo suíço, cheio de buracos, à média de quase uma demissão por mês; perceber que as "trapalhadas", vamos chamar-se assim, que levaram a sucessivas demissões no governo por questões judiciais se tornaram, no último ano, um padrão e não uma exceção; perceber que a maioria absoluta, ao contrário do que pediu e prometeu ao eleitorado, não criou estabilidade, mas incerteza e que essa instabilidade e incerteza vem de dentro do próprio governo; todos estes factos - e não opiniões - são como fogo na pradaria para dar gás ao populismo, ao discurso do "eles são todos iguais" ou do "é preciso uma limpeza". No último ano, o PS perdeu dez pontos nas sondagens. Se as eleições fossem hoje, segundo o último estudo, o PS e PSD estariam num empate técnico. Vale a pena olhar com atenção para estes dados e perceber quem, no último ano, subiu nas intenções de voto. E porquê.
Desvalorizar situações graves, como fez o primeiro-ministro em versão informal este fim de semana, não é apenas varrer o lixo para debaixo do tapete, é também ficar à espera que ninguém levante o tapete. E mesmo que ninguém levantasse o tapete - claro que lá estão os comentadores, essa espécie irritante que ainda por cima não percebe quais são as prioridades - o lixo continuaria lá, apenas não se veria.
António Costa já foi comentador. Talvez valesse a pena ao primeiro-ministro voltar a calçar esses sapatos, nem que fosse por um dia. Porque quando tentamos calçar os sapatos dos outros, talvez tenhamos uma grande surpresa.
