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A seguir ao terramoto de 1755, o Marquês de Pombal tomou três medidas capitais: mandou enterrar os mortos, tratar os feridos e fechar os portos. Não muito diferente do que fazemos, quase três séculos depois, com a calamidade que coube ao mundo inteiro - trazida pelo Corona virus. O Marquês, por razões políticas, acrescentou depois medida diferente, sem equivalente contemporâneo. Mandou organizar Auto de Fé em que foi queimado vivo o Reverendo Malagrida, velho jesuita que declarara ser o terramoto castigo de Deus por Lisboa não ser suficientemente católica - e, em efígie, o Cavaleiro de Oliveira que declarara o contrário mas vivia prudentemente em Londres.
Sem tais brutidão e simplismo, grande sobressalto moral tomou então a Europa intelectual por muitos anos - como é que um Deus, omnipotente e bom, consentira em tão grande mal? - e veio a ser relembrado em meados do século XX, quando a enormidade do Shoa se tornara evidente.
Desta vez não dei por nada de semelhante - na China, como seria de esperar, pois as religiões lá são proibidas ou definhadas, salvo o culto do Partido Comunista, mas em todos os outros lugares também. Fátima está às moscas. Em parte talvez por os europeus serem cada vez menos piedosos mas em parte também porque a maldade humana não pede meças à indiferença divina: Shoa, Hiroshima, Nagasaki, Dresden, a colonização belga do Congo, para lembrar apenas alguns dos horrores mais conspícuos. E há a tradição antiga da colonização ocidental espalhar in partibus infidelis doenças benignas que lá se tornam mortais: índios da América Latina no século XVI, esquimós no século XIX.
Lições a aprender? Quanto à saúde. Os países que mais eficazmente se estão a defender da crise do Corona virus, são a China - passada primeira reacção ditatorial -, Singapura e, na Europa, a Alemanha. Tomemos deles a disciplina necessária para tempos de crise sanitária e, se possível, mais nada. Viver como a China vive em tempo normal seria uma abominação; viver como a Alemanha, um empobrecimento.
Quanto à economia. Na sua segunda adolescência, o meu chorado amigo Mário Soares verberava constatemente a "economia de casino" que nos estava a
arruinar. Como em tantos outros adolescentes, o seu simplismo irritava muitos profissionais do ramo e, como tantos outros adolescentes, tinha razão. Há, porém, muitos interesses criados contra mudanças necessárias e talvez quase tudo volte ao mesmo, à espera de inevitável revolução.
(Neste canto ínfimo do Cosmos, único com seres conscientes, a Arte da Fuga por Glenn Gould encheu a sala, o Deus que a Bach tanto deve tomou conta do dia e dúvida assaltou-me outra vez, entre dois franceses. Talleyrand, que escapou ao Terror no exílio, morreu velho, e achava que quem não tivesse vivido antes da Revolução não conhecera a doçura de viver e Saint-Just que ajudara a criar o Terror, por ele fora decapitado muito novo e dissera que, a partir da Revolução, a felicidade passara a ser possível).