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Cresci a ouvir, deliciado, a banda Ena Pá 2000 e a achar que as humoradas pré-candidaturas de Manuel João Vieira à Presidência da República eram uma provocação indispensável à respiração daquela democracia engravatada que se levava demasiado a sério.
O candidato Vieira produzia cenas teatrais, concertos e rábulas que fizeram caminho - e alguma mossa - num tempo onde até a esquerda parecia tão engomada como a camisa de um aristocrata. Vieira fez bem. E fez-nos bem.
O candidato Vieira está de volta, mas agora com um sucesso mediático incomparável. Assume-se de esquerda-direita e do extremo-centro. Promete "um Ferrari para todos, vinho canalizado em todas as casas, prostitutas em cada canto das ruas, uma patinadora russa para os homens e bailarinos cubanos para as mulheres".
O candidato Vieira não veste apenas a pele de palhaço de feira com a arma do escárnio. A performance subverte, através da parvoíce, a excitação e o fanatismo dos conhecidos acólitos do grotesco parlamentar.
Por ocasião dos 47 anos do 25 de Abril, em plena pandemia, o candidato Vieira foi rosto de umas comemorações paralelas da liberdade cujo cartaz incluía Joana Amaral Dias, já então avençada centro de outras camisolas. Agora, o candidato Vieira anda a surfar a espuma do algoritmo graças ao colinho de certa esquerda desesperada e da extrema-direita recauchutada. Duvidam? Mergulhem mais a fundo na onda das redes sociais e descobrirão o quanto os encómios se cruzam, da esquerda festiva aos Mários Machados desta vida.
Há 30 anos, o ator Mário Viegas apresentou-se como candidato independente pela então UDP à Presidência da República, mas fazendo do humor e da poesia a coisa mais séria do mundo. No seu manifesto anti-Cavaco, inspirado no manifesto anti-Dantas de Almada Negreiros, estavam escarrapachados, sem contemplações, dez anos de cavaquismo e a necessidade que Portugal tinha de ser qualquer coisa de asseado e despoluído.
Mário Viegas, claro, não sabia o que queria para o País e isso fazia parte da riqueza da personagem. Mas um certo País sabia o que queria do homem e do seu talento: um manifesto desassombrado, desacomodado e humorado que não se resumisse às provocações de um guardador de retretes.
Sim: há uma diferença entre denunciar o grotesco de forma poética e sarcástica e ser o grotesco em versão folha dupla. O primeiro ato não é para todos e o segundo é aquele a quem os farsantes do poder limpam o rabo. Há 30 anos, Mário Viegas soube ser a "pequena palhinha nesta sinistra engrenagem". Hoje, o candidato Vieira é apenas o caminho mais direto para a ratoeira.
