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Um artista alemão recusou o prémio na categoria de Criatividade atribuído num dos mais prestigiados concursos internacionais de fotografia, mas conseguiu lançar o debate sobre a utilização de inteligência artificial na obra premiada. A fotografia em causa mostrava duas mulheres de gerações diferentes, a preto e branco, e com ela Boris Eldagsen pretendia abrir o debate sobre o que pode ou não ser considerado fotografia.
No caso, não houve propriamente uma omissão ou violação das regras do concurso. Aliás, previamente à decisão do júri Boris Eldagsen tinha assumido a "cocriação" da imagem, explicando que o seu objetivo foi explorar as possibilidades criativas da inteligência artificial, alegando que o resultado depende fortemente do conhecimento fotográfico que origina o processo. O argumento foi valorizado pela organização, decidindo que a inscrição preenchia os critérios na categoria. Tanto que se preparava para promover um debate sobre o tema, lançado precisamente numa plataforma de inteligência artificial. A iniciativa foi suspensa após a decisão do artista de recusar o prémio.
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Numa fase de aceleração de experiências resultantes da exploração da inteligência artificial, não há semanas sem notícias mostrando provocações, preocupações e decisões contraditórias sobre algumas das suas novidades. Na União Europeia existe a intenção de regular as suas aplicações, garantindo a proteção dos direitos fundamentais, mas a tentativa para chegar a um consenso arrasta-se há cerca de dois anos.
A dificuldade na obtenção de um acordo levanta dificuldades óbvias. Os sistemas e aplicações assentes em inteligência artificial estão a fazer caminho de forma acelerada, e mesmo com regulação será difícil evitar riscos ou desvios. Com a porta escancarada, é ainda mais evidente que a tecnologia vai ditando as suas próprias regras, sobrepondo-se à decisão política.
Não adianta diabolizar os novos caminhos da tecnologia, e naturalmente podem ser gigantescas as suas virtualidades. Mas também não adianta sermos ingénuos e ignorarmos riscos reais, dos quais a desinformação é um dos menores. Estamos a falar de sistemas que hoje já têm capacidade de criação de moléculas, ou que podem fornecer facilmente instruções para fabricar armas químicas letais.
Na tentativa de Boris Eldagsen de agitar a comunidade artística e promover o debate, foram lançadas dúvidas pertinentes sobre as fronteiras da criação e sobre o papel que o conhecimento humano pode ter na condução da criação pela máquina. É essencial que utilizemos todas as janelas de oportunidade para essa discussão, percebendo o impacto que a inteligência artificial pode vir a ter na ciência, no emprego, na cultura, nos próprios sistemas de discussão pública e, no limite, na organização política.
Proibir será tentar parar uma forte tempestade com a mãos. Mas simplesmente fechar os olhos e deixar que a torrente flua sem qualquer travão ou tentativa de regulação é um risco. Podemos ter uma visão restritiva ou liberal, mas temos de estar preparados para mudanças imprevisíveis no que julgávamos ser o espaço da tecnologia. Para sermos honestos, ninguém pode em rigor responder até onde pode levar-nos este fascínio pelo cérebro eletrónico.
