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Recentemente a Fundação Francisco Manuel dos Santos divulgou um estudo sobre a ética e integridade na política em Portugal, coordenado por aqueles que são dois dos principais (se não mesmo os principais) especialistas no tema entre nós: Luís de Sousa e Susana Coroado. O estudo ganhou ainda maior relevância à luz dos vários escândalos de corrupção dos últimos dias (até porque a reação política a que se assistiu perante as suspeitas de corrupção na União Europeia contrasta de forma significativa com a reação habitual em Portugal perante suspeitas similares).
O estudo identifica uma perda de confiança na classe política por partes dos portugueses. O estudo parece indicar que isto resulta, quer de uma maior exigência dos portugueses para com os políticos, quer de uma diminuição da ética na política. Esta perda de confiança é um dos principais fatores que explicam, quer a crescente insatisfação com a democracia (uma vez que os eleitores não se sentem representados), quer o crescimento dos movimentos populistas. Esta perda de confiança também agrava um dos principais problemas para o funcionamento do Estado: a desconfiança mútua entre cidadãos e entre estes e instituições públicas é causa de enormes disfunções no funcionamento do Estado e da economia.
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A conclusão mais relevante do estudo, no entanto, é a assimetria entre os conceitos de responsabilidade prevalecentes na classe política e nos cidadãos. Os políticos entendem, em geral, que a responsabilidade política se esgota na responsabilidade legal. Os cidadãos têm uma exigência bem mais ampla: entendem que pode existir responsabilidade ética e política mesmo onde não existe responsabilidade legal.
Esta assimetria explica, provavelmente, outra conclusão do estudo: a introdução pela política de critérios e processos de avaliação e garantia de integridade na política resulta não de uma convicção política sobre essa necessidade, mas sim de uma preocupação política com a perceção dos cidadãos sobre a política. Isso conduz à introdução de normas e códigos, mas sem realmente se acreditar neles. Em consequência a sua introdução acaba muitas vezes por se cingir a uma adoção formal, sem uma verdadeira incorporação na cultura política e sem a criação de instituições e instrumentos de implementação e controle eficazes. Exemplos recentes disto mesmo são os vários casos de impedimentos e incompatibilidades envolvendo políticos e, em particulares, ministros. Tornou-se claro que o sistema político adotou normas que os políticos não estavam realmente preparados para cumprir e que, confrontado com isso mesmo, o sistema político reagiu restringindo, na prática, o âmbito das regras que tinha adotado.
Isto conduz, no entanto, a um agravamento da assimetria que mencionei entre políticos e cidadãos. Os cidadãos começam a achar que os políticos apenas fazem de conta nos compromissos que assumem para aumentar a integridade na política. Cria-se assim um ciclo vicioso. Os cidadãos desconfiam dos políticos. Estes reagem adotando normas que visam tranquilizar os cidadãos e repor essa confiança, mas depois a pratica não corresponde a essas normas, agravando ainda mais a desconfiança.
Apesar deste ciclo vicioso um outro paradoxo é salientado no estudo. Os cidadãos estão crescentemente exigentes com a integridade dos políticos e descontentes com eles, mas não parecem depois agir eleitoralmente de forma consequente com essa exigência e descontentamento. Talvez porque pensem que, "sendo os políticos todos iguais", mais vale votar no que faz mesmo sendo desonesto. O problema é que esta inconsequência também explica porque razão os políticos remetem toda as questões éticas para o domínio da justiça. Não é tema da política pois os próprios cidadãos não o valorizam politicamente. Talvez seja isto que explique a diferença com o que aconteceu em Bruxelas com a Vice-Presidente do Parlamento Europeu. Ainda agora se iniciou a investigação criminal sobre ela, estando longe de estar condenada, e já se retiraram várias conclusões políticas. Cá a indignação mediática inicial seria rapidamente ultrapassada pelo silêncio da política e a ausência de consequências políticas.