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Daniel Oliveira reflete sobre o coming out de Mariana Mortágua, que assumiu recentemente a sua homossexualidade. No seu espaço habitual de Opinião na TSF, o jornalista diz que "compreende" a "necessidade que várias minorias discriminadas têm de ver pessoas com visibilidade pública assumirem a sua orientação sexual". Isto porque, afirma o cronista, "ao contrário do género ou da etnia - quase sempre visíveis -, a orientação sexual só o é se a pessoa decidir revelá-la, se fizer o coming out".
"Esta é, antes de tudo, uma escolha pessoal, ninguém tem direito a fazê-lo em nome de outros, mesmo em casos em que achem que existe hipocrisia, porque nunca é pela incoerência que as pessoas que abusivamente expõem serão atacadas... será sempre pela sua homossexualidade, o que quer dizer que [ao expor] participam no cerco homofóbico, não o expõem. E porque pura e simplesmente não têm esse direito, mas o coming out também é uma escolha política: a escolha de dar visibilidade ao que não tem de ser invisível, de permitir que a homossexualidade seja tão íntima ou tão pública como a heterossexualidade, que nunca remetemos para o domínio da intimidade", considera Daniel Oliveira.
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O comentador recorda os exemplos de "dois políticos de direita": Adolfo Mesquita Nunes e Paulo Rangel.
"Adolfo Mesquita Nunes fê-lo numa entrevista quando foi candidato à câmara da Covilhã, Paulo Rangel fê-lo numa entrevista totalmente pessoal, quando se candidatou à liderança do partido. Não o fizeram como afirmação de política, mas para impedir que fosse usada contra si em ambientes conservadores. Preferiram - e bem - ser eles a controlar a narrativa da sua própria vida, não permitindo que fosse visto com vergonha, que não é vergonha alguma", sublinha.
Assim como nos casos de Rangel e Mesquita Nunes, Daniel Oliveira defende que "não se pode dizer que Mariana Mortágua tenha saído do armário". "Qualquer pessoa que estivesse no círculo social e não obrigatoriamente pessoal ou íntimo dos três sabia da sua orientação sexual. Não a escondiam, apenas não tinham feito dela tema público."
Ainda assim, explica o cronista, o caso de Mariana Mortágua é "diferente", uma vez que, "se há partido onde se espera que ser lésbica não seja um problema é o Bloco de Esquerda".
"Talvez tenha considerado que ao se candidatar à liderança isso tenha uma nova relevância. Ao contrário de Rangel e Mesquita Nunes, Mortágua não o fez numa entrevista sobre a sua vida pessoal, fê-lo num programa de debate em que juntou a isso a traços políticos, que incluíam características biográficas: ser de esquerda, filha de um antifascista, e alguém que incomoda alguma pessoas com poder. Tudo motivos para o ataque político, segundo a própria. E ser lésbica também. Como sempre foi, não sejamos cínicos, a homossexualidade de Paulo Rangel e Adolfo Mesquita Nunes. Até a falsa homossexualidade de Sócrates foi usada de forma dissimulada e cobarde. A sua afirmação é política, porque ao contrário de Paulo Rangel, mas não ao contrário de Adolfo Mesquita Nunes, essa condição não é indiferente às suas posições políticas", refere Daniel Oliveira, assumindo que não é "dos que acham que tudo o que é pessoal é político". No entanto, "o pessoal conta na política", assegura. "A escolha de o revelar pode ser pessoal, mas tem impacto social e por isso impacto político."
"Haverá um dia em que poderemos dizer - como hipocritamente tanto escrevem em caixas de comentários, quase sempre os mais homofóbicos - que não queremos saber disso para nada. Nesse dia, não teremos políticos a fazer campanha como bons pais de família e a exibir as suas esposas. Mas as políticas nunca exibem os seus maridos. Nesse dia, não existirá o estatuto anacrónico de primeira-dama. Nesse dia, um beijo entre dois homens ou duas mulheres na rua será visto com a mesma naturalidade do cumprimento carinhoso entre um casal heterossexual. Nesse dia, falar de relações homossexuais a crianças será tão natural como falar da relação entre o seu pai e a sua mãe. Não será visto como um tema sensível, impróprio para menores, como se a heterossexualidade remetesse para o amor e a homossexualidade remetesse para o sexo", entende o jornalista, reforçando que, "por isso, dizem que nada tem a ver com isso, que é íntimo, que cada um sabe do que gosta na cama". "Como se estivéssemos a falar só de cama", atira.
Para Daniel Oliveira, este tema é "pessoal", e, "sendo pessoal, cada um sabe se fica na sua intimidade ou não". "A maioria dos heterossexuais não acha que a sua heterossexualidade seja íntima, falam dela, mostram as suas mulheres e maridos no Instagram, andam de mão dada na rua, remeter a homossexualidade para o terreno exclusivo da intimidade não é respeito, é desejo de clandestinidade."
Segundo o cronista, é contra esta "clandestinidade" que se fala de "orgulho gay e é absurdo de se falar de orgulho hetero". "Porque o orgulho não é um sentimento de superioridade, mas uma vitória sob a vergonha que a sociedade tenta impor."
"Há pessoas que não fazem o coming out. Até há pessoas públicas que nada contam da sua vida pessoal, seja qual for a sua orientação sexual ou estado civil. É uma escolha legítima, é a minha, por exemplo. Mas, infelizmente, um político assumir a sua homossexualidade ainda é uma escolha política, porque ainda tem de ser. Até à exibição pública de afeto entre dois homens ou entre duas mulheres ser vista com a mesma naturalidade como vemos um homem e uma mulheres fazerem o mesmo. Até falarmos com os nossos filhos sobre isso com a mesma naturalidade que falamos de todo o amor. Até o coming out ser absolutamente desnecessário", conclui.
Texto redigido por Carolina Quaresma