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Por acaso reli há uns dias uma passagem célebre do Livro I da Retórica de Aristóteles onde ele defende que a credibilidade é a qualidade mais importante para um orador conseguir convencer uma audiência.
O filósofo da Antiga Grécia escreveu mesmo que, e passo a citar, "não se deve considerar sem importância para a persuasão a probidade do que se fala (...) mas quase se poderia dizer que o caráter é o principal meio de persuasão".
Marcelo Rebelo de Sousa, por exemplo, joga permanentemente com a sua credibilidade para fazer política através de uma torrente constante de declarações.
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Apesar de notórias contradições em que muitas vezes parece cair, quase bipolares, a verdade é que o entendimento popular, até agora, tem sido benevolente para com o Presidente da República - Marcelo continua credível e, dizem as sondagens, há uma boa maioria a confiar nele.
Em contrapartida, o primeiro-ministro parece estar a sofrer uma crise de credibilidade. Na primeira fase da pandemia cada declaração pública de António Costa, mesmo vazia de conteúdo, fazia aumentar a confiança dos Portugueses na liderança do governo para enfrentar a crise sanitária.
Nesta segunda vaga da Covid-19, cada anúncio feito por Costa de novas medidas, mesmo as evidentemente necessárias, mesmos as mais razoáveis, parecem só aumentar a desconfiança, as queixas, as confusões e os protestos.
O mesmo ciclo de crença/descrença se passou com a ministra da Saúde e, até, com a diretora-geral da Saúde.
Essa erosão da credibilidade governamental está claramente exposta na forma como Ljubomir Stanisic, o chef que se juntou no sábado de confinamento aos manifestantes dos restaurantes que exigiam mais apoios, explicou aos jornalistas o que é que o governo podia fazer para ajudar o setor da restauração:
"O governo pode fazer muito. A primeira coisa que pode fazer é deixar de nos mentir, é deixar de nos dar falsas esperanças.
Baixem o IVA por amor de Deus, é o nosso maior custo. Façam a isenção do pagamento da TSU. É mínimo o que estamos a pedir.
Não estou a pedir para me darem um milhão, não estou a pedir para me darem 10 mil euros, estou a pedir outro futuro nos impostos para todos nós conseguirmos recriar o país, que tem de ser respeitado.
Temos de mandar um pouco dos custos fixos para baixo. Diminuímos tudo, mas as rendas estão a 100 por cento. Nós temos a ocupação a 50 por cento, temos zero no turismo, estamos a pagar 100 por cento da água, 100 por cento de eletricidade.
Fazemos tudo para que o governo se aguente e o governo não nos está a ajudar para aguentarmos."
A carga emotiva colocada em cima das declarações de Stanisic (ainda por cima prestadas no momento em que o Hino Nacional era ouvido em fundo, o que deu uma ilustração sonora grandiloquente), é um mecanismo de criação de credibilidade.
O orador pretende com um discurso tendencialmente emocional, sofrido, até com apelos à ajuda de Deus, convencer a audiência da veracidade da situação catastrófica que os restaurantes estão a enfrentar e da combatividade decidida dos manifestantes. Ele quer que as pessoas confiem nesses pressupostos.
A subsequente lista de pedido de redução de impostos e as queixas sobre os custos fixos dos restaurantes são outro mecanismo de criação de credibilidade usado pelo cozinheiro que é vedeta de TV: sejam tais medidas certeiras ou disparatas, o que se pretende é mostrar que quem fala é especialista no tema, sabe do assunto e é capaz de ir ao concreto e ao real. Ele quer que as pessoas vejam nele um perito.
Por fim, as referências ao governo são duras (ele acusa-o de mentir) e, ao mesmo tempo, condescendentes (Stanisic chega a dizer "fazemos tudo para que o governo se aguente").
O mecanismo de credibilidade do orador é criado aqui pela tentativa de afastamento da luta reivindicativa dos restaurantes da luta política dos partidos políticos e procura fazer crer que as críticas ao governo não são feitas em nome da oposição. Ele quer que as pessoas vejam nele alguém que é independente e está longe da politiquice diária.
Portanto, mesmo um porta-voz informal de um movimento reivindicativo específico como o cozinheiro Ljubomir Stanisic consegue dar lições sobre retórica política ao governo: ele percebe que para ser levado a sério tem de ser credível e para isso precisa de se mostrar verdadeiro, combativo, conhecedor e independente - o que daria para escrever um verdadeiro menu para servir a um político de sucesso.
Não sei se Stanisic ganhou a batalha da credibilidade, mas sei que os princípios de Aristóteles sobre a retórica que ele, talvez por instinto, seguiu deviam ser rapidamente assimilados por António Costa, Marta Temido e Graça Freitas - a serenidade necessária no combate à pandemia precisa muito que eles curem a sua doente credibilidade.