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Na margem sul do Tejo existe um bairro de gente trabalhadora. Há famílias que ali vivem há mais de 20 anos. Vieram de vários cantos de Portugal, vieram de vários cantos de África. Lisboa precisava então de mão de obra, de gente que trabalhasse com salários baixos, em trabalhos de que outros fugiam.
Sem dinheiro ou possibilidades de ter casa condigna, foram construindo as suas próprias casas, onde e conforme podiam. Não chegaram nunca a ter uma habitação digna. O fruto do seu trabalho nunca deu o suficiente para criar os filhos e sair dali para casa melhor.
O bairro do 2º Torrão espraia-se com vista para o Tejo. Um lugar idílico, onde a vida é um pesadelo de calor no verão e de frio no inverno. Fica na freguesia da Trafaria, no Concelho de Almada, um dos concelhos nos arredores de Lisboa, a quem a capital arrastou para uma enorme inflação imobiliária, onde o turismo impera e o mercado de arrendamento ou de venda imobiliária é acessível a poucos.
De junho a esta parte, a Câmara Municipal de Almada notificou várias dezenas de famílias para saírem até final de setembro. A razão é a vala da Trafaria que em caso de tempestade, com a força das águas, pode arrastar as casas para o Tejo, com tudo e todos os que lá estiverem dentro, assim o diz a Câmara.
É uma mudança urgente. A cobertura da vala está frágil. A Câmara sabe disto desde 2019 ou 2020, não se percebe bem. Foi um relatório da proteção civil que o disse, mas a Câmara não cede esse relatório a ninguém. Desde que o relatório existe até à urgência com que vieram notificar as pessoas para sair passaram cerca de dois anos sem nada se fazer.
Na primeira reunião, a Câmara disse às pessoas para não se preocuparem, pois a Câmara ajudaria todas as pessoas e garantiria realojamento atempado.
Só que a promessa não aconteceu.
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A Rosa, nome fictício, está grávida. Ontem, 30 de setembro, lá conseguiu mudar de casa para uma outra num concelho vizinho. Uma casa pequena e que ainda não conta com o filho que está prestes a nascer.
A Maria, nome fictício, disse-me que a sua casa não seria demolida pois estava fora do perímetro e nunca fora notificada. Passado poucos minutos, os funcionários da Câmara chegaram. Deram-lhe um papel para assinar, sem lhe dar tempo que o lesse, pediram-lhe o cartão de cidadão e tiraram uma fotografia ao mesmo. Avisaram-na que daí a dois dias tinha de ter as malas feitas para sair de lá e ir para um hotel. Não disseram qual. As suas coisas iriam para um armazém. Não disseram qual.
À Conceição, nome fictício, os senhores da Câmara mandaram-na à Segurança Social para tratar do realojamento. A Segurança Social disse que não tinha direito a habitação. A Conceição estava a arrumar as coisas e a faltar ao trabalho. O empregador marcou-lhe falta como manda a lei. A Conceição tem um filho de 4 anos de idade. Mãe solteira. Esta noite ficou em casa de uma colega de trabalho. Ela e a sua criança de 4 anos. Se não fosse a caridade de uma colega, esta mãe, este filho, estariam já em situação de sem abrigo.
Ao deixar estas mulheres, caminho pela rua de terra batida e ouço a vereadora da proteção civil a responder a perguntas dos jornalistas. Dizia que todas as famílias têm solução. De resposta pronta, mas sem nunca concretizar. Uns metros à frente, vejo o vereador da habitação sem se saber explicar aos moradores em breve desalojados e que ainda não sabem para onde irão.
Algo não bate certo. A vala da Trafaria não aguenta com mais casas. Os moradores desesperam por uma. A Câmara diz e a realidade desdiz.
A vala da Trafaria segue silenciosa. O fio de água que lhe corre parece falar de paz. Mas, alguns metros acima dela, ninguém parece querer saber disso.
