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Às vezes, dá ideia de que o mundo é um imenso tabuleiro de xadrez, onde vários jogadores fazem as suas jogadas, mais ou menos arriscadas, mais ou menos cautelosas, mais ou menos decisivas para o desenrolar do jogo. Criar o Estado de Israel em 1948 parece, à luz do que aconteceu nas últimas sete décadas e meia, uma jogada pouco acertada. No pós-segunda grande guerra, os judeus ficaram "credores" do mundo civilizado, por causa do Holocausto, que nenhum jogador conseguiu antecipar e evitar, e de outros horrores cometidos sobre um povo que não tinha terra. Dos Estados Unidos à Austrália, o povo hebreu espalhou-se pelos cinco continentes. Mas eram um povo sem terra, sem país. Tinham nação, mas não tinham território.
No lugar onde o xadrez do mundo se joga, as Nações Unidas, os outros países acharam acertado que a Judeia dos tempos de Cristo devia ser recuperada. Os judeus tinham de ter terra, terra santa, nos antigos territórios de onde, originalmente, provinham. Visto assim parece acertado. Acontece que a terra, que não é santa apenas para os judeus, e Jerusalém, cidade reclamada por três religiões, estavam ocupadas por outro povo que também, em tempos idos, tivera terras naquele lugar do mundo. A Palestina.
Os sábios padres jesuítas nunca começam uma conversa, que pode durar dias, semanas ou meses, sem que haja acordo quanto aos termos. A discussão prévia pode, também ela, levar semanas ou meses. Mas torna-se fundamental, porque depois quando quem discute está de acordo quanto aos termos, torna-se mais fácil chegar a uma conclusão. Porque as palavras significam o mesmo para os dois lados.
A decisão política da criação de dois Estados num único pedaço de terra pressupõe, antes de mais, que os dois lados se reconheçam mutuamente como iguais; que aceitem que um e outro têm direitos e deveres iguais; que um e outro se respeitem mutuamente, nas suas diferenças, a começar pela diferença religiosa; e que, um e outro, estejam disponíveis para negociar, chegar a acordo e, depois disso, cumprir acordado, sem truques nem má-fé, sem rancores nem ódios.
Desde 1948 que a jogada decidida em Nova Iorque tem tudo para correr mal. Não só porque os dois povos não se puseram de acordo quanto aos termos, como os que votaram essa decisão não fizeram a discussão prévia que pudesse facilitar esse acordo. Hoje, numa altura em que os grandes jogadores de xadrez do mundo voltam a reclamar como solução que haja dois Estados numa só terra, vale a pena lembrar que, mais uma vez, a ideia sofre de um problema de base. O Hamas, braço armado de um partido político que governa a Palestina, que é um peão de outro grande jogador, o Irão, não reconhece sequer o direito de Israel a existir, quanto mais a que exista em coabitação com a Palestina.
Desde a criação do Estado de Israel que os judeus que escolheram viver naquelas terras estão ameaçados de extermínio e morte por todos os países que os rodeiam. Israel ocupou terras, expulsou com terrorismo e violência palestinianos, nunca cumpriu as resoluções das Nações Unidas, talvez porque o fundamentalismo dos vizinhos recuse a existência daquele povo.
No fundo, mais do que lutar pela independência, Israel tem lutado pela sobrevivência. Pelo direito a existir. Pelo direito a coabitar com outros povos naquela geografia.
Também por isso, a história se vem repetindo desde 1948. Não há como sair deste impasse sem negociações sérias e moderadas. Do lado palestiniano, a moderação de Arafat, durante décadas, e a de Abbas, nos tempos mais recentes, foram substituídas pelo radicalismo fundamentalista do Hamas e de outros movimentos. Do lado israelita, o medo de um povo que vive permanentemente ameaçado não ajuda a criar laços de confiança com quem está do outro lado da mesa.
Uns e outros têm as mãos manchadas de sangue. Entretanto, no grande tabuleiro de xadrez do mundo, senhores de gravatas impecáveis e de colarinhos brancos continuam a debitar palavras e intenções. No fundo, no mundo, israelitas e palestinianos são apenas peões num jogo global onde os equilíbrios de poder se vão fazendo, precisamente, à custa do sangue dos peões.
