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Em 2015, André Ventura confessou, num livro, admiração por José Sócrates. “Foi um político que me convenceu no seu início”, disse ele do antigo líder do PS e ex-primeiro-ministro. Sócrates pareceu a Ventura um político “íntegro” e “firme”, capaz, até, “de lutar contra interesses instalados”.
Ventura votou em Sócrates em 2005. O atual chefe da extrema-direita de trazer por casa deixou-se levar por aquele a quem chamou “mestre nas encenações”. E dizia: “Todos os congressos do PS continham uma ovação quase estalinista […] Sócrates aparecia quase como salvador da pátria.” Ventura deixou-se influenciar. Depois ter-se-á arrependido. E prometeu ser mais exigente consigo próprio, com a democracia e com a verdade.
Não tenho notícia de tal evolução da espécie.
Mas, a julgar pelas palavras de Mithá Ribeiro — que saiu de deputado e do Chega com estrondo —, Ventura sofrerá da mesma patologia política que ele próprio identificou em Sócrates: o problema do líder narcísico incurável.
Há muitos por aí, nem sempre à vista desarmada. Mas nos partidos notam-se mais. E, convenhamos, uma generosa fornada de portugueses sempre sonhou com um mandador assim, vindo do nevoeiro, de Santa Comba ou de Algueirão Mem-Martins, consoante as épocas, as crises e o ressentimento.
Mithá diz que Ventura é um demónio vingativo, uma personalidade perturbada que se alimenta da adoração que têm por ela.
Mithá fez de grilo falante do coletivo que nunca lhe deu importância. Mithá não vem da psicanálise, mas sim da História e dos Estudos Africanos. Assume-se intelectual das direitas. Mas já que a psicanálise é para aqui chamada, convém lembrar que o velhinho Freud avisara para os perigos da subjugação da realidade e da abordagem patológica da verdade. Se despirmos as novas vestes da extrema-direita, o que se encontra por baixo é parecido.
Sócrates apresentou-se ao povo como um “animal feroz”.
Vinte anos depois, Mithá apresenta-nos Ventura, o predador narcísico.
Como nos alertou o filósofo Rob Reimen, os valores intelectuais ou espirituais dizem pouco ou nada a líderes cheios de si que se comportam como crianças mimadas. Não ouvem ninguém e tudo o que seja dispensável a seus olhos não tem o direito de existir.
Talvez por isso, Mithá já seja, por estes dias, um “cadáver político” aos olhos dos mais fanatizados seguidores do líder do Chega. O culto pede incenso e o ego do chefe é sensível.
Se o fenómeno Chega é o que parece desde sempre — um projeto de poder pessoal, sem tolerância para críticas e ignorante da autocrítica — é certo que virá o dia em que restará a Ventura o gato António. E ninguém para mudar o caixote da areia.
Enquanto isso, a democracia que se cuide.