
Corpo do artigo
A figura de Joacine Katar Moreira foi um trunfo eleitoral para o Livre e a sua agenda identitária, assente na defesa de um feminismo radical e na representatividade parlamentar da luta contra o racismo, foi ganhando terreno na reta final da campanha. É deselegante, para não dizer pior, afirmar, como a deputada o fez, que foi eleita sozinha, mas é verdade que a personalização foi um ingrediente essencial para o sucesso. Com o início dos trabalhos na Assembleia da República, contudo, esse crescimento da figura de Joacine foi esvaziando o Livre de conteúdo programático.A personalização passou de trunfo a excesso e começou a tornar-se evidente o silêncio desconfortável perante algumas polémicas em torno do partido.
O incidente com a abstenção e a posição sobre a Palestina acabou por acelerar uma guerra que começava a parecer inevitável. É risível invocar falta de comunicação para justificar um voto, mas é ainda mais degradante o espetáculo que se segue, numa espiral de declarações autodestrutivas que tem incendiado cada vez mais a relação tensa entre a deputada e as estruturas diretivas. Isto quando a Assembleia Geral, órgão máximo do Livre entre congressos, tinha decidido no domingo um blackout sobre as questões internas, na tentativa de conter e esvaziar o conflito trazido para a praça pública.
É inexplicável que uma das bandeiras do partido, apontada desde início como prioridade, fique para trás simplesmente por falhar a data de entrega.
Mais do que a análise do que toda esta novela representa para o Livre, e mais ainda do que discussões ideológicas sobre a Esquerda ou sobre o posicionamento da agenda identitária de Joacine, aquilo a que temos assistido permite múltiplas reflexões sobre a ação política e a dinâmica partidária e parlamentar. Destacaria duas que me parecem particularmente relevantes.
Uma delas é a total impreparação revelada pela deputada, que atinge o expoente máximo no incidente em torno do projeto de lei da nacionalidade. É inexplicável que uma das bandeiras do partido, apontada desde início como prioridade, fique para trás simplesmente por falhar a data de entrega. E nem vale a pena analisar o posicionamento dos partidos e perceber se o PCP e o PEV foram ou não pouco cordiais, porque há uma responsabilidade total do Livre ao não conseguir agendar a discussão. Além do trabalho parlamentar, essa impreparação salta à vista na forma de estar de Joacine, na incapacidade de lidar com a pressão ou de se relacionar com a comunicação social, chegando a chamar apoio da GNR para afastar os jornalistas. Ao contrário do que afirmou no fim de semana, precisa mesmo que a ensinem a ser política.
Um deputado não se representa a si próprio, mas a um programa escolhido por um conjunto de eleitores que nele votou.
A segunda reflexão é sobre a tensão entre individualidade e coletivo quando se ocupa um cargo público. Por mais que a ideia de liberdade individual possa parecer sedutora face à cristalização dos partidos e à noção de seguidismo que associamos à disciplina de voto, é importante nunca esquecer que um deputado não se representa a si próprio, mas a um programa escolhido por um conjunto de eleitores que nele votou.
Joacine Katar Moreira é livre e tem um mandato que está para além do alcance do partido, podendo desvincular-se sem com isso perder o lugar parlamentar, mas o Livre está refém da sua representatividade. O que não deixa de ser perverso, olhando para os votos apurados a 6 de outubro. E deixa os votantes do Livre na incerteza quanto ao que será, no futuro, a ação programática de Joacine e do mandato que lhe confiaram.
TSF\audio\2019\11\noticias\27\27_novembro_2019_a_opiniao_de_ines_cardoso
11557886