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Era agosto do ano de 2004 e a cena aconteceu em Lwena, uma cidade do leste de Angola a poucos quilómetros da fronteira com a Zâmbia.
Eu era voluntário num campo de refugiados montado numa antiga fábrica de tacos de madeira para o chão. Hoje, é uma loja a retalho, uma grande superfície.
O campo começou a funcionar pouco depois de 2002. Com a morte de Savimbi, a guerra civil terminou. O lado vencedor, o MPLA, tornou-se omnipotente.
O campo enchia-se de pessoas em trânsito que voltavam da Zâmbia para o seu país, Angola. Muitas seguiam depois para sul, para as suas terras de origem. Tinham fugido de Angola ali a norte, por terem sido raptadas a sul pelos militares durante a guerra e trazidas para ali, onde a UNITA tinha os seus quarteis mais fortes. Era ali que os meninos se tornavam crianças-soldado e as meninas escravas.
Foi nesse campo de refugiados que conheci o pequeno Pietà. Teria na altura os seus 4 anos de idade e falava utchokwe, o dialeto da sua família de etnia Tchokwe, uma etnia de origem banto e que as fronteiras europeias dividiram a régua e esquadro por três países diferentes: Angola, Zâmbia e República Democrática do Congo.
O Pietà falava também inglês. Aprendeu ao ouvir falar as pessoas do campo de refugiados onde nasceu, na Zâmbia. Era um miúdo amoroso. Quando eu chegava ao campo de manhã, insistia que tomasse com ele o pequeno-almoço, uma papa de milho muito doce e quentinha, feita pelas mães logo de madrugada.
Duas semanas depois de ter chegado com os seus pais e irmã a Lwena, encontrei-o à minha espera junto ao portão do campo e pediu-me, num perfeito português, que lhe desse boleia na pick-up: "Dá-me boleia até ali à frente, ao portão".
Penso no Pietà e no que será feito dele. Não sei sequer se está vivo. Não sei se foi à escola. Como seria se tivesse nascido noutro país, com outras condições, se tivesse acesso à educação e pudesse potenciar a sua inteligência como a de um rapaz que em duas semanas fala uma nova língua?
Onde teria chegado? Quanto teria alcançado? Que notas teria tido na universidade?
Que fruto de acaso ser criança hoje, dependente do lugar onde se nasce e com que condições económicas.
O artigo 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos fala de igualdade e mérito.
Mérito o Pietà teria. Faltava o resto, quase tudo.