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A Jornada Mundial da Juventude nasce debaixo de fogo. Em fevereiro, o relatório com o maior retrato até agora traçado dos abusos sexuais em Portugal revelou a toda a sociedade números e relatos dramáticos, expondo as estruturas de poder e de ocultação que permitiram agressões persistentes ao longo de décadas. A reação por parte da hierarquia católica foi tardia e pouco empática. A par da chaga dos abusos, as despesas com a preparação do recinto e a polémica em torno do famoso palco, entretanto alterado, lançaram o debate sobre o risco de ostentação no evento.
Faltava, em contagem decrescente para o encontro que trará milhares de pessoas a Lisboa, mais uma polémica, centrada no selo do Vaticano comemorativo da Jornada. Um selo que recupera a estética e o imaginário do Estado Novo, transmite uma imagem nacionalista e permite leituras enviesadas e racistas. Tudo razões para que até figuras com responsabilidades na hierarquia, como o bispo Carlos Azevedo, que exerce as suas funções no Vaticano, tenham classificado a imagem como sendo de "péssimo mau gosto".
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Dir-se-á, como foi invocado pela porta-voz da Fundação JMJ, Rosa Pedroso Lima, que as leituras que de imediato foram feitas nas redes sociais são abusivas e que o selo concebido por um ilustrador italiano pretende apenas ser uma alegoria da barca de S. Pedro, com "o papa conduzindo os jovens e a Igreja para uma nova época". Poderá até invocar-se o desconhecimento do autor em relação ao Padrão dos Descobrimentos e aos riscos de uma leitura épica de um período carregado de intolerância, segregação e exploração. Poderá ainda salientar-se o quanto o papa Francisco tem sido defensor do respeito e da comunicação entre povos e culturas. Nada disso apaga o erro tremendo que aquele selo constitui.
Contestada e abalada nos seus alicerces, a Igreja está obrigada a refundar-se. Essa refundação obriga a assumir e corrigir muitos dos seus erros, e obriga ainda a sintonizar-se com o mundo que a rodeia, abrindo-se aos debates e às prioridades da sociedade. É essencial que a Igreja assuma claramente o que quer ser e de que forma comunica. Um selo pode parecer um detalhe, mas cristaliza visões do mundo que não são compatíveis com o que ouvimos Francisco transmitir no plano da fé.
Podemos até aceitar que houve falta de cuidado na pesquisa e ignorância na elaboração da imagem pelo ilustrador Stefano Morri. Sobra, ainda assim, o plano pastoral. Nem nesse, que a nota explicativa do selo descreve, o resultado é ajustado. A escolha de uma pose épica e nacionalista é contrária às orientações e ao espírito de fraternidade que emana de cada intervenção do papa. É contrária a uma visão participativa em que cada um tem igual peso, em que cada pessoa conta, em que o poder é substituído pela unidade. Fica, no fundo, a dúvida: se o selo é um erro e um objeto de puro mau gosto, ou o retrato de uma parte substancial da Igreja, que tarda em sair da idade das trevas.
