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A vitória de Javier Milei não é surpreendente tendo em conta os apoios que tinha de duas das três partes em que se dividiu o eleitorado na primeira volta, embora possa conseguir uma votação final superior à diferença mínima e dentro da margem de erro, para que apontavam as últimas sondagens.
Temos então o triunfo de quem apareceu na televisão munido de motosserra para "exterminar a casta política". Um radical de direita populista, um anarco-capitalista como o próprio Milei se define, alguém que diz admirar Margareth Thatcher (a chefe do governo britânico aquando da guerra entre os dois países que permitiu aos ingleses recuperar as Malvinas), que insultou o Papa argentino, que chegou a ter também palavras muito pouco honrosas sobre Diego Armando Maradona e mesmo assim, coisa incrível e nunca vista na Argentina, é eleito presidente da república.
Como lembrou Pola Oloixarac no livro "Galeria de Celebridades argentinas", "ser (ou não) da casta tornou-se numa condição alarmante, já que todos podem ser acusados de o ser. Milei define-se pela negativa: o que vem de fora, o intocado pelo desprestígio e pelo desastre, o que não forma parte de nenhuma família política".
Mas traz a família para o governo. Karina, a irmã, é a sua chefe política. Familiarmente, vive também uma vida casta junto dos seus cinco cães, a que chama "os filhos de quatro patas". Ele é o homem que se gaba de raramente ejacular. Prova de que tem um controlo total sobre o seu corpo, como foi dizer a um programa de televisão sem que lho tivessem perguntado.
Controlo total? O que é possível confirmar é que perde frequentemente o controlo de si mesmo, quando alguém dele discorda.
Eleito com uma agenda que defende pouco estado na economia, propõe cortar os gastos públicos em 15%, o fim da moeda local, o peso argentino, a eliminação do Banco Central e a dolarização da economia, para além de coisas como a legalização de órgãos humanos e de considerar as alterações climáticas "uma invenção da esquerda".
Para além do profundo cansaço de uma parte importante do eleitorado argentino com o kirchnerismo peronista, o chamado candidato libertário beneficiou dos apoios fundamentais da conservadora Patricia Bullrich, candidata da coligação de centro-direita Juntos pela Mudança, que ficou em terceiro lugar na primeira volta com 24% dos votos, assim como do ex-presidente liberal Maurício Macri (que liderou o país entre 2015 e 2019), que lhe deu publicamente o apoio logo após a vantagem de Massa na primeira volta. Uma vitória com 55% ou 56% dos votos é precisamente a soma dos votos que ele Milei (mais de 30%) e Patrícia Bulrich (mais de 245) conseguiram na ida às urnas a 23 de outubro.
O trunfo principal do antigo guarda-redes e antigo cantor rock, "pensador precário e superficial" segundo Oloixarac, foi o estado de exaustão dos argentinos com a situação económica. Com uma inflação de 143% em termos anuais e a pobreza que afeta 40% da população, a Argentina enfrenta a pior conjuntura económica nas últimas duas décadas. Tem um acordo de crédito desde 2018 com o Fundo Monetário Internacional (FMI) de 44 mil milhões de dólares, negociado pelo então presidente Macri.
Milei não é um dirigente clássico de direita, pois não partilha os seus valores e costumes, sendo antes alguém que prospera no caos. Um homem que, afirma Oloixarac, "à falta de atenção médica, encontrou atenção mediática".
Quando na semana passada foi questionado na televisão sobre o seu plano de dolarização da Argentina e se esse projeto ainda estava de pé, afirmou: "É claro que vou aplicar", tirando dúvidas sobre o que se tornou uma das bandeiras da sua campanha. "O ajuste vai acontecer de qualquer forma", alertou. E continuou: "Propomos um ajuste para evitar que termine em hiperinflação. Mas vamos fazer com que a política e os amigos dos políticos paguem por isso, não o povo".
O que é que ele vai poder fazer? Muito pouco, não vai ter suficientes apoios no parlamento, o Libertad Avança tem uma representação diminuta, não chega aos 14% dos deputados nacionais, não vai ter capacidade de fazer reformas e possivelmente nem mesmo capacidade de durar. "O impeachment vai bater à porta, não tem capacidade de fazer o que promete" como dizia na TSF o cientista político argentino e professor do ICS da Universidade de Lisboa Andrés Malamud.
Poder-se-ia pensar que as derrotas eleitorais de Bolsonaro e de Trump iriam travar a emergência de outros líderes populistas de extrema-direita, mas a verdade é que eles continuam a aparecer e a triunfar, especialmente em períodos de crise económica dos países.
Se o poder o vai moderar e conter? Era o que se dizia de Trump e Bolsonaro. Depois... foi o que se viu.