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O Presidente da República escandalizou o país com uma aparente desvalorização do número de casos de abuso sexual detetados pela Comissão Independente nomeada pela conferência episcopal portuguesa para investigar os abusos sexuais na Igreja. Marcelo disse que não lhe pareciam assim tantos. Veio depois explicar-se, dizendo que não tinha pretendido desvalorizar a gravidade da situação e que se referia antes a que lhe pareciam poucas denúncias face ao número provável de casos. Em vez de assumir o erro tentou convencer as pessoas de que não o tinham compreendido. Isso acabou por ser o pior: pareceu usar a sua inteligência para tentar fugir à responsabilidade do erro que que cometeu.
Esta não é a primeira vez que o Presidente tem declarações infelizes. A verdade é que aquilo que conduziu o Presidente à sua enorme popularidade é, em boa parte, responsável pelos excessos que podem acabar por também a destruir.
Em Marcelo, os defeitos são, muitas vezes, o lado negro das suas virtudes. Marcelo conseguiu uma enorme proximidade com os portugueses porque é genuíno nessa proximidade. Ele interessa-se pelas pessoas e as suas histórias. Ele é o Presidente que tantos portugueses sentem a seu lado porque é o Presidente da Porta ao Lado. Ele alimenta a nossa autoestima, mas de forma tão excessiva que parece também ocultar o que temos de melhorar. Ele é exímio a confortar, mas às vezes perguntamo-nos se saberá liderar.
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A sua proximidade e voluntarismo, tanto lhe permitem ser o homem político da sua geração que mais rapidamente compreendeu a importância da dimensão emocional na política, como o expõem em demasia. Para estar próximo, Marcelo sente que tem de estar sempre presente. Isso permite-lhe, muitas vezes, condicionar o discurso público sobre um tema bem antes de ele sequer acontecer. Mas também o faz cair em inconsistências e cria expectativas impossíveis de cumprir. Se falar sobre tudo, um Presidente, ou acaba por dizer algo controverso (como na terça) ou, frequentemente, fala sem dizer nada. É, por isso, que, falando quase sempre, raramente parecer ter uma posição sobre os assuntos de que fala. O Presidente explica todos os lados de uma questão, sem exprimir verdadeiramente uma posição sobre ela. Habituou-se tanto a comentar que se esquece que um Presidente fala para se pronunciar. Foi o que aconteceu, agora, num tema da maior sensibilidade. Não acredito que pretendesse desvalorizar o número de casos de abuso sexual na igreja. Mas em vez de exprimir um juízo sobre isso, o Presidente comparou números. Ignorou que a sua função enquanto Presidente não é explicar, mas sim pronunciar-se. O que o país esperava dele era um juízo e uma liderança moral e não uma explicação ou contextualização do problema.
O Presidente nunca conseguiu despir a pele de comentador. E nem sequer a forma como então comentava, mais focado no sucesso ou insucesso de uma estratégia política do que sobre se uma política era boa ou má. É por isso que muitos o acusam também de falta de exigência para com o governo. O Presidente fala tantas vezes a explicar o que o governo faz que isso é facilmente confundido com apoio ao que o governo faz. Isso leva até que se desvalorize o que, por vezes, consegue. A criação do novo modelo de gestão, mais independente, do Serviço Nacional de Saúde (que me parece das poucas boas reformas feitas por António Costa) deve-se, sobretudo, ao Presidente. Mas ninguém se deu conta disto. O Presidente está tão presente comunicacionalmente que já não conseguimos distinguir o essencial do acessório na sua função, levando muitos a acharem que Marcelo apenas se importa com o acessório.
Não espero que Marcelo mude de estilo. Ele é quem é, no melhor e no pior. Mas acho que tem de demonstrar saber identificar o que é realmente importante e que sabe ser exigente e não apenas simpático. Exigente com a igreja neste tema, com o governo na governação e mesmo, connosco, os portugueses, em relação ao que temos de mudar. Tem dois problemas sobre a mesa - os abusos sexuais e a integridade política - em que tem de demonstrar que é capaz, não apenas de confortar, mas também de liderar. Tem de oferecer direção moral e exigir que se tirem consequências. Começando consigo mesmo. Ao contrário do que a bolha do Twitter parece achar, Marcelo não morreu politicamente na terça-feira. Mas o que fizer a seguir determinará se consegue usar as suas qualidades para o nosso bem ou apenas para o nosso entretenimento.