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Este foi um dos casos perante o qual decidi conscientemente, enquanto as primeiras notícias iam saindo e os detalhes se adensando, que só escreveria sobre o mesmo depois da primeira poeira assentar. Apraz-me dizer o seguinte e só o seguinte, quanto ao debate das "filtragens" de quem entra.
Quando as primeiras notícias começam a sair, estava na rua e é através dos "whatsappes" que me vou informando. Isto permitiu um menor ruído à volta e algum alheamento, cujo primeiro pensamento foi "tenha este afegão 20 anos, 30 anos, 40, 50, 60 ou 70, pertence sempre a uma geração de guerra". E este é o ponto crucial no debate sobre os filtros, avaliações e critérios na "lotaria da recepção de refugiados". É preciso ter presente que quem vem do Afeganistão, tenha a idade que tiver, viveu sempre em guerra, viveu sempre num ambiente em que tudo era urgente e escasso.
Foi sinalizado durante a avaliação que tinha problemas psicológicos? Foi. Porque não foi acompanhado posteriormente? Porque não quis! O falhanço do Estado está aqui, faz tudo bem e no fim demite-se. Faz tudo bem, começando por aprovar a vinda de um afegão cujo percurso de vida não denuncia qualquer tipo de ligação aos senhores da guerra ou aos taliban ou ainda à Al-Qaeda. "Uma agulha no palheiro", este Abdul Bashir! Esta demissão tem razões económicas e ideológicas, dizendo estas últimas muito do que somos. As económicas porque simplesmente não há dinheiro para contratar médicos, psicólogos, psiquiatras e pedopsiquiatras. As ideológicas, que dizem muito de nós, é o facto de não querermos ver Portugal como uma prisão a céu aberto para refugiados legalizados e ilegais à espera da resolução do processo. Por isso fogem e o problema deixa de ser nosso, continuando a sê-lo!
De regresso ao crime no Centro Ismaili, parece agora ter sido passional. Também foi hipótese que me passou pela mona, pelo simples facto de saber que quem cresceu com uma mãe de burqa, junto com as outras mães todas, qual exército de ninjas, cria sem saber uma categoria onde coloca a "mulher imaginária", a perfeita, a mãe imaculada e sofredora. Era isto que Bashir fazia durante a solidão da noite, efabulava uma relação com a Professora Farana a partir das conversas que tinham durante o dia. E é claro que nessa efabulação uma mulher nunca diz não a um homem, tal qual no Afeganistão, onde certamente nunca terá visto tal afronta. Foi este "não de Farana" que foi a "pornografia derradeira" que Bashir não tolerou. Ele, que tinha tudo tão organizadinho na fábula que criara, onde os três filhos passariam a ter os cuidados de uma mulher de novo e ele também, voltando a ser um homem completo! O facto de se atravessar um período de festa religiosa, com o esforço do jejum à mistura, para Bashir, Deus teria que estar obrigatoriamente a seu lado nesta demanda. E se não estivesse, mais valia morrer ou matar, e matou! O jogo de soma zero, sempre foi o favorito dos talibans, mais os seus tribunais religiosos.
Creio desta forma ter contribuído para o debate dos "filtros para refugiados". Neste caso particular, as sucessivas gerações de guerra conferem um selo muito particular a quem foge deste ambiente e o carrega para sempre! Só uma boa integração poderá retardar estas "bombas-relógio", que necessitam de uma ocupação profissional logo nos primeiros dias, para sentirem que de facto estão a começar de novo, mitigando com a construção de novas memórias, as antigas, as que marcaram o que começam a assumir como uma outra vida, passada e que não mais voltará.
Uma última palavra para a reacção rápida das autoridades, denunciando um dispositivo especial para este período de Ramadão, sinónimo de uma postura em nada negligente, proactiva e responsável. Não foi terrorismo, mas se fosse teria tido resposta imediata. Olho vivo patrícios!
A Acontecer / A Acompanhar
- 13 de Abril, lançamento do livro "Vivências e Reflexões Geopolíticas - Para onde vamos?", de Victor Ângelo, às 16h, na Associação de Auditores dos Cursos de Defesa Nacional, Campo de Santa Clara, 62, Lisboa;
- Todos os domingos, na Telefonia da Amadora, entre as 21h e as 22h, Programa "Um certo Oriente", apresentado pelo Arabista António José, um espaço onde se misturam ritmos, sons e palavras, através das suas mais variadas expressões, pelos roteiros do Médio Oriente e Ásia.
Raúl M. Braga Pires, Politólogo/Arabista, é autor do site www.maghreb-machrek.pt (em reparação) e escreve de acordo com a antiga ortografia.