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Por estes dias de calor extremo, executivos de fato saem a correr dos táxis para os escritórios com ar condicionado em Milão. Turistas tomam as suas bebidas sob nuvens de vapor refrescante, ao mesmo tempo que uma parte dos moradores partiu para as suas casas de férias. Em contrapartida, na pista escaldante do aeroporto transportadores encharcados em suor descarregam bagagens do avião. E ao longo da autoestrada operários carregam baldes cheios de cimento em obras de manutenção.
A descrição é da correspondente do The New York Times em Milão e expõe a profunda desigualdade revelada pela atual onda de calor: entre aqueles que podem proteger-se e aqueles que não têm condições para o fazer. No dia em que o recorde de temperatura europeu atingiu os 48,8 graus, na Sicília, um trabalhador morreu ao ar livre nas imediações de Milão, à semelhança do que já tinha acontecido com dois outros operários na semana passada.
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As ondas de calor, revelam sucessivos estudos, não afetam todos da mesma forma. Claro que há fatores de risco motivados pela idade e pela condição de saúde, mas outro dos elementos que potencia a vulnerabilidade é a profissão. As atividades mais expostas a condições extremas são, genericamente, precisamente as mais mal pagas. Não há estudos aprofundados sobre a quantidade de pessoas em risco, mas as análises de diversos relatórios na Europa coincidem num ponto: é ao ar livre e em profissões com maior uso de força que aumentam os casos de desidratação e golpes de calor.
As autoridades de saúde italianas recomendaram pausas frequentes e ajustamentos de horários em trabalhos ao ar livre. O tema abriu o debate público em Itália, com os sindicatos a considerarem que as mortes ocorridas por estes dias teriam sido evitadas com pausas mais frequentes e paragens laborais nos horários do dia com temperaturas extremas. Adicionalmente, as desigualdades prolongam-se fora do horário de trabalho, seja nas condições de habitação ou na forma como muitos trabalhadores precários acumulam horas e um segundo emprego mesmo quando o organismo dá sinais de alerta e a saúde se ressente.
Sabendo-se que as ondas de calor vão ser cada vez mais frequentes, esta é mais uma via de desigualdade que terá de ser combatida. E não é mera teoria ou tema abstrato, como tendemos a considerar quando estamos protegidos nos escritórios climatizados. A pandemia cavou de forma evidente os fossos sociais e económicos pré-existentes, entretanto agravados com a crise e a inflação decorrentes da invasão da Ucrânia. O que se vê, em Portugal como a nível mundial, é um desequilíbrio crescente e um conjunto de linhas a dividir-nos. Nem sequer as condições climatéricas são democráticas. O sol, quando aquece, não é de facto igual para todos. Estamos rodeados de desigualdade, mergulhados nela. E por vezes já mal a vemos.
