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Vai longe, muito longe a imagem idílica daquela 10 de junho de 2016 em Paris. Diante de milhares de portugueses e luso descendentes reunidos numa festa popular, Marcelo discursava e a chuva de verão começou a cair cada vez mais grossa. Costa, na retaguarda do presidente, protegeu o chefe de estado com um guarda-chuva, onde se podia ler, mesmo à distância, a palavra "fidelidade".
Era o princípio de uma nova era. Cavaco Silva tinha deixado Belém e Marcelo trazia uma nova aragem ao palácio.
Naquela tarde em Paris, o professor e o antigo aluno pareciam dois enamorados, enfeitiçados por um país que acabara de sair da troika e que ansiava virar a página. Um e outro estavam sintonizados como raramente um Primeiro-Ministro e um Presidente da República tinham estado. Se Costa era sr. contente, o "otimista irritante", como, carinhosamente, lhe chamou Marcelo, o presidente era o Sr. feliz, com um país a seus pés, repenicado de abraços, beijos, afetos e selfies. Nos anais da política portuguesa, este período de início de mandato de ambos será recordado como o da cumplicidade perfeita. Mesmo que, logo desde esses tempos, Marcelo fizesse questão de clarificar que havia uma perfeita harmonia entre "um presidente de direita e um governo de esquerda".
Oito anos depois, Costa continua contente, mas Marcelo já não está tão feliz. Na segunda eleição, não conseguiu bater o recorde de votos da segunda vez de Mário Soares. Viu, já este ano, a sua popularidade descer a níveis que nunca julgou possíveis; os beijos, abraços e selfies já não são novidade e está a caminho do fim do mandato. Faltam dois anos e meio, sendo que, nos últimos seis meses, o presidente perde a capacidade de dissolução do parlamento, a chamada "bomba atómica", o único e verdadeiro poder presidencial, na opinião de politólogos e analistas. E se Costa ficar até ao fim da legislatura, Marcelo terá atravessado toda a sua magistratura com o mesmo primeiro-ministro, que chegou a S. Bento antes de Marcelo ser eleito e que deixará S. Bento já com outro presidente em Belém.
Este domingo, Marcelo explicou porque vetou e porque promulgou, depois de corrigido, o decreto-lei sobre as carreiras dos professores. E deixou claro que negociou com o sr. contente as alterações que achava necessárias para poder aprovar o documento. No fundo, no fundo, bastou um advérbio de modo para, designadamente, o presidente considerar que havia "um mínimo" de condições para que o decreto pudesse ser aprovado. Um «designadamente» que, aparentemente, fez Marcelo mudar de posição. Desta forma, o decreto não fica "fechado", e deixa a porta "entreaberta" para que as negociações possam continuar, com a perspetiva futura da recuperação total do tempo de serviço que os professores reclamam.
Mas - e tem havido sempre um mas nas declarações, faladas ou escritas, do Presidente da República - este domingo Marcelo deixou uma frase que passou despercebida nas notícias e nos comentários. A certa altura, quando justificava a "interferência" em matéria que é da competência do governo e, por isso, antecipando críticas, o presidente considerou que só ele pode "controlar" a maioria absoluta.
"Só há um controlo da maioria absoluta, que é o Presidente da República", afirmou o sr. feliz, lembrando que o sistema é semipresidencial e não parlamentarista e que, nestes casos de maiorias absolutas, não se pode contar com o parlamento, porque a maioria dos deputados suporta o governo e deixa pouca margem para a oposição. O verdadeiro fiscal do governo, o único que pode travar os desmandos absolutos de uma maioria está em Belém. E, com a dupla a caminho do fim dos mandatos, Marcelo quis deixar bem claro que vai interferir, vigiar, controlar, influenciar, intervir e vetar, quando for caso disso. Ainda assim, Costa continua contente e Marcelo já não parece tão feliz. Embora a dupla esteja condenada a entender-se até ao último dia, mesmo que a palavra "fidelidade" já não caiba no cenário.
