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Em junho de 2018, ficámos a saber, pelo Ministério Público, que a lei portuguesa permite "classificar como organização terrorista um grupo de adeptos de uma associação desportiva que se proponham esbofetear atletas para os intimidar". E como crime de terrorismo "uma acção dirigida contra atletas de um clube com o objectivo de os intimidar."
O essencial para aquela acusação de terrorismo foi então a motivação: intimidar.
Lembrei-me disso quando li o acórdão do caso da Cova da Moura, que na segunda-feira condenou oito agentes da PSP a penas de prisão até cinco anos por crimes de sequestro, ofensas à integridade física -- incluindo disparos de shotgun --, injúria agravada, denúncia caluniosa e falsificação de documentos, todos agravados por "grave abuso de autoridade".
É que no acórdão sobre o caso da Cova da Moura falta algo de fundamental: a motivação.
A acusação do Ministério Público tinha encontrado uma: ódio racial. E ódio racial porquê? Não apenas, claro, porque todas as vítimas são negras. Mas por atribuir aos agentes vários insultos racistas e porque o seu comportamento, detendo ilegalmente, agredindo, formulando acusações falsas e para isso falsificando autos de notícia, ou seja, cometendo aquilo que não ignoravam serem crimes graves, implicava uma animosidade especial contra as suas vítimas.
Mas o procurador que em tribunal representou a acusação decidiu deixar cair essa motivação. E o tribunal concordou.
Concordou por exemplo considerando que quando um dos condenados ao puxar o cabelo a uma das vítimas, na esquadra, lhe disse "ainda por cima és pretoguês" isso "não é bastante para considerar preenchido qualquer conceito de ódio racial."
Concordou mesmo dando como provado que um agente não identificado disse às vítimas: "Pretos do caralho, deviam morrer todos." E que outros agentes não identificados, "enquanto desferiam bastonadas, socos e pontapés nos ofendidos" gritavam: "O que é que vocês querem, pretos do caralho? Aqui não vão entrar!"
Concordou a ponto de não reparar na repetição, nos autos de notícia que reputou de falsificados, da expressão "indivíduos de raça negra".
Retiramos assim deste acórdão que no dia 5 de fevereiro de 2015 oito agentes da PSP se aliaram para sequestrar, espancar, disparar sobre, acusar falsamente e injuriar, com base na cor da sua pele, cinco jovens negros, sem qualquer motivação de ódio racial ou de intimidação ou perseguição de um grupo.
Há-de pois ter sido porque sim: porque lhes apeteceu; porque acharam que podiam.
E não só eles: à saída do tribunal, foram ostensivamente ovacionados por colegas enquanto o líder do sindicato que representa os condenados certificou que "só foram acusados de abuso de autoridade", e que "os polícias não têm de conhecer as leis."
Se temos polícias que acham que não têm de conhecer as leis -- quanto mais cumpri-las -- temos polícias que acham que não têm de ser polícias. E têm toda a razão.
Aliás, a lei prevê que quando um funcionário é condenado a pena de prisão superior a três anos e tenha praticado o crime ou crimes em causa "com flagrante e grave abuso da função e manifesta e grave violação dos deveres que lhe são inerentes" seja proibido do exercício das funções por dois a cinco anos. O tribunal optou por não decretar esta pena acessória. Cabe agora à PSP provar que tais comportamentos terroristas não têm lugar no seu seio. Ou ao país tirar conclusões sobre a PSP.
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* A autora não segue o acordo ortográfico