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Não escrevi no Expresso in memoriam dedicado a Vasco Pulido Valente. Obituários num jornal sério não são - ou não deveriam ser - como os elogios fúnebres de academias. Não devem ser hagiografias; devem referir o bem e o mal que tenham sido feitos por um homem. O meu exemplo preferido é o obituário de Winston Churchill no Times de Londres. Longo, dando-lhe o valor de salvador do Reino Unido e da civilização ocidental ao fazer ganhar a segunda grande guerra, tratava-o duramente quanto aos Dardanelos na primeira grande guerra e quanto a algumas passagens da vida política na Inglaterra d"entre deux guerres (e nem falava do prémio Nobel da literatura que o homem ganhou; como os ingleses nos têm lembrado ultimamente, o que se passe fora das suas ilhas, se não forem guerras que possam ganhar, pouco lhes interessa).
Em elogios fúnebres, o mais reputado terá sido o que Fontenelle, como secretário perpétuo da Academia Francesa, proferiu em 1721 sobre o 1° Marquês d"Argenson, Tenente-Geral da Policia de Paris (na realidade, uma espécie de chefe da PIDE de Luis XV), universalmente detestado. Respeitando o morto sem deixar de se respeitar a si próprio - tarefa difícil naquele caso - o que Fontenelle escreveu ainda hoje se lê com admiração e proveito.
Não escrevi obituário do Vasco, meu amigo desde a sua infância e da minha adolescência, como se fosse da família, porque passados primeiros anos de proximidade, depois da mudança de regime primeiro na direita soarista do partido socialista, a seguir no lado lúcido da Aliança Democrática (fomos co-redactores de moção a congresso do Partido Socialista que ajudou Soares a colocar-se ao centro e derrotar o esquerdista Manuel Serra; com Vasco já na Aliança, ao lado de Sá Carneiro, transmitiu-me convite deste para secretário de estado da cultura - descobrira-se que José Blanco, o intelectual destinado ao posto, trabalhara garbosamente para a Censura - que eu recusei, acabando por ser Vasco o nomeado), eu continuara a viver no estrangeiro cada vez mais afastado das peripécias da nossa política interna, as quais Vasco fora comentando, e do próprio Vasco e da sua vida privada. De maneira que não poderia em consciência avaliar o seu trabalho, salvo como historiador: continuo a considerar O Poder e o Povo livro capital para entendimento da primeira metade do século XX em Portugal.
Aqui, porém, posso lembrar um amigo, contar coisas que outros não saberão ou terão esquecido. Um dia, tinha 14 anos e era baixo - deitaria corpo a seguir - olhando lá para cima para o pai, Júlio Correia Guedes, engenheiro da Robialac, muito culto e erudito (explicou-me como os romanos faziam a barba), comunista clandestino disciplinado, disse-lhe: «Ah pai, se eu tivesse a tua idade sabendo o que eu sei !». E, muitos anos depois, escrevendo num jornal sobre Victor Cunha Rego, quando este ainda era vivo: «Ensinou-me tudo. Felizmente eu só aprendi metade».
Duas das muitas memórias boas que guardo do Vasco Pulido Valente.