Corpo do artigo
Daniel Oliveira recupera as declarações de António Costa no início do debate do Orçamento do Estado 2022. Segundo o jornalista, o primeiro-ministro disse que "este Orçamento tinha sido referendado nas eleições" e "com os apoios sociais que garante ninguém pode dizer que seja um Orçamento de austeridade". No espaço de Opinião que ocupa habitualmente na TSF, o comentador considera que ambas as afirmações "são tecnicamente verdadeiras".
"É verdade que, no essencial, este é o Orçamento que foi chumbado antes das eleições e que António Costa mostrou com um sorriso no fim do debate pré-eleitoral com Rui Rio. Com ele, conquistou uma maioria absoluta. E é verdade que as medidas de apoio social, que em alguns casos até foram negociadas com o Bloco de Esquerda e com o PCP, nada têm a ver com os cortes feitos durante a intervenção da troika", afirma.
TSF\audio\2022\05\noticias\03\03_maio_2022_a_opiniao_daniel_oliveira
Para o jornalista, "a estas duas verdades técnicas, correspondem duas mentiras políticas". "O Orçamento do Estado apresentado aos portugueses correspondia à inflação de 0,9% em 2021, que não se esperava que fosse muitíssimo diferente em 2022. Perante um cenário macroeconómico, que ainda por cima é otimista, as condições em que este Orçamento é aprovado são muitíssimo diferentes", nota.
A verdade é que os trabalhadores terão uma brutal perda de salário real. E esta perda tenderá a ser definitiva
"Passámos da manutenção do salário a uma redução substancial do salário, ou seja, não é o mesmo Orçamento. Como não é o mesmo Orçamento, quando a inflação come parte da dívida pública, resulta em mais receitas no IVA e não corresponde a uma atualização dos escalões do IRS. Tudo com ganhos para o Estado. Ou, em sentido inverso, obriga a medidas fiscais para controlar o aumento dos combustíveis e levará ao aumento das taxas de juro, muito brevemente", explica.
Com uma maioria absoluta, diz Daniel Oliveira, "o Governo tem toda a legitimidade para apresentar este Orçamento sem sequer o negociar". "Mas é uma falácia dizer que ele foi referendado numa realidade radicalmente diferente."
"Quanto à austeridade, as palavras são tão boas para revelar, como para esconder. De tanto nos concentrarmos na palavra, ignoramos a realidade. A verdade é que os trabalhadores terão uma brutal perda de salário real. E esta perda tenderá a ser definitiva, como aconteceu na crise anterior em que os funcionários públicos nunca recuperaram de uma queda de 13% do salário real desde 2010", relembra.
O Governo quer usar a redução drástica do salário real para reduzir custos e diminuir a procura, usando-o como instrumento para contrair a inflação
Na opinião de Daniel Oliveira, "ao contrário do que disse Fernando Medina", atualizar os salários para acompanhar a inflação "não leva a qualquer espiral inflacionista quando a causa dessa inflação nada tem a ver com a procura interna, mas com a oferta externa". "Dizer que a atualização nos salários seria comida por uma espiral inflacionista, que ela própria causaria, não resulta de qualquer evidência técnica. E já nem falo do indexante dos apoios sociais, que também fica na mesma, o que corresponde a uma redução de todos os apoios reais aos mais pobres."
O cronista considera que o Governo quer "usar a redução drástica do salário real para reduzir custos e diminuir a procura, usando-o como instrumento para contrair a inflação". "O que é bem diferente", observa. "Antes de tudo é inútil. É como tentar absorver uma mancha de óleo com um cotonete ou travar uma inundação com um pequeno dique. A origem desta inflação é externa e a pressão interna para a conter terá sempre uma eficácia marginal. E é injusta. Sabendo-se que os aumentos salariais dos funcionários públicos são uma referência noutros setores, levará a que os trabalhadores sejam o primeiro para-choques contra a inflação", sublinha.
Com a descida dos salários reais, o Governo vai, de facto, poupar dinheiro para as suas contas sempre às custas dos mesmos
De acordo com Daniel Oliveira, "o lucro será poupado". "Há setores menos afetados pela pressão inflacionista que aproveitam estes momentos para aumentar os preços e a receita. É por isso que o FMI defende um imposto temporário para empresas que aumentem muito os seus lucros no meio deste processo."
"Confiando no otimismo de Medina, teremos uma queda de salário real de 0,8% e um aumento da produtividade de 3,5% em 2022. Isto corresponde a uma perda do peso do trabalho no rendimento nacional de 4,3%. A maior deste século. Quase o dobro do que aconteceu em 2012, o pior ano de Passos Coelho", recorda também o comentador.
Repete-se a estratégia do bom aluno, pondo os trabalhadores a pagar a aparência de contas certas
"Uma transferência do trabalho para o capital que, crise após crise, se torna permanente", afirma Daniel Oliveira, acrescentando que "a imposição desse transferência foi uma das estratégias da troika".
"Com a descida dos salários reais, o Governo vai, de facto, poupar dinheiro para as suas contas sempre às custas dos mesmos. O argumento é que as taxas de juro podem aumentar. Como sabemos, elas dependem, sobretudo, do que fizer o BCE. Foi graças a Mário Draghi e não a Passos ou a Costa que as nossas taxas de juro caíram. Mas repete-se a estratégia do bom aluno, pondo os trabalhadores a pagar a aparência de contas certas. Podemos não chamar a isto de austeridade. Sendo diferentes as causas da crise, são diferentes as estratégias para por os de sempre a pagá-la, mas a sua lógica e os argumentos são exatamente os mesmos", conclui.
* Texto redigido por Carolina Quaresma