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E desta vez reparo, pela primeira vez, que chamávamos ao Avô o Avô Pires. Menos ternura ou mais respeito? Por outras palavras, posição subalterna da mulher? Não creio que a Avó Berta pensasse em coisas assim. Governava ela a casa - no tempo da Grande Guerra com cinco tostões por dia, gabava-se, que era monárquica como o Avô e não gostava da maneira como a república tinha desbaratado as finanças, tirando o Afonso Costa mas esse era jacobino - três criadas e o criado velho que me levava e trazia da escola da D. Maria Prego (até eu ter negociado com ele, no segundo dia, largar-me e trazer-me só até à Praça do Giraldo, por vergonha dos meus condiscípulos), a Inocência, mulher de mandados, mãe de Etelvina que se entretinha comigo em furores adolescentes e morreu tuberculosa, que a mantinha ao corrente das idas e voltas do Avô à casa que ele pusera à amiga quando começara a enriquecer. Em Évora havia poucos ricos ricos, como dizem os espanhóis, mas havia vários ricos sólidos, herdados. Algumas casas mostravam legendas discretas, de metal sobre alvenaria de pedra, pintadas por cima, rezando "Os que podem aos que precisam". O Avô ainda não tinha lá chegado quando começara a arruinar-se.
Que diria a Avó Berta das desigualdades que se avizinham, ainda mais à vista quando se puder sair à rua outra vez? O Padre Salvador, afilhado de missa do Avô e, pároco próximo, visita frequente lá de casa, já há muito dispusera de objeções básicas: não era camelo mas corda, vindo o erro aí de má tradução antiga (atribuí sempre o contentamento do Padre Salvador com este engano ao facto dele ser muito estúpido, pois, com outra imagem, a força da afirmação mantém-se); vários outros autores bíblicos tinham-se já encarregado de sossegar as almas dos seus eventuais padrinhos de missa e doutros benfeitores, explicando que não se tratava só dos homens ricos mas também de pobres e de altos e de baixos e de maus e de bons, em suma que só entraria no Reino de Deus quem Deus quisesse que entrasse, por outras palavras, chegava-se lá pela Graça de Deus e não pelas obras, como explicaram mais de mil anos depois, tintim por tintim, Calvino e os seus seguidores. (Claro que nem a Avó Berta nem o Padre Salvador conheciam bem ou iam buscar exemplos protestantes).
Que iria ela fazer agora, mesmo sem ser contra neto convencido de outra Verdade? Lembrar a ela e a nós que sempre houve ricos e pobres, mais uma vez? Outro neto, mais moderno do que eu, digital, dir-lhe-ia que agora a diferença entre os números de um lado e do outro lado é tal que, se não for diminuída depressa, andaremos todos à pancada uns com os outros de maneira que lhe lembraria a Guerra de Espanha, no pior que dela lhe teriam contado na altura quando os tiros se ouviam do outro lado da raia e famílias se zangaram para sempre?
Coitada da Avó Berta. E quem já não se lembre da Guerra de Espanha nem da Guerra Mundial de 1939-1945, ficará com a guerra que aí vem para contar aos netos.